Por: Natália Brito e Vitor Sena, Núcleo de Advocacy, Ações e Parcerias.
Apesar dos múltiplos esforços para a visibilidade da pauta de mitigação e adaptação, os avanços concretos em temas de mudança climática nas cidades brasileiras são incipientes.
Uma característica da maior parte dos municípios é a ausência de regulamentação no processo de expansão das zonas urbanas, o que permite que as populações mais pobres se localizem em zonas de alto risco, como planícies aluviais e ladeiras propensas a deslizamentos. Além disso, a falta de controle desta urbanização fez surgir zonas carentes de infraestrutura de serviços públicos, acrescentando riscos de saúde para os moradores, potencializados pelas suas condições de evidente vulnerabilidade, em razão de sua situação socioeconômica.
A política regulou, por meio da legislação e planejamento urbano, as partes consolidadas da cidade, já ocupadas ou aptas para urbanização, reservando áreas para mercados específicos, fazendo com que muitas áreas pudessem ser ocupadas intensamente com a incorporação de empreendimentos imobiliários para populações de médias e altas rendas. Por outro lado, a produção de moradia popular da maioria passou a ser a esfera da não regulação, da falta de planejamento, o que incrementa a sensibilidade para as populações de baixas rendas que habitam nas cidades. Logo, o efeito é o que se presencia atualmente, um modelo excludente, que impulsionou a habitação popular para a informalidade, precariedade e autoprodução. O contrassenso é que a irregularidade se tornou regular, enquanto medida habitual para as camadas de baixa renda.
A combinação dos processos de construção do espaço com as condições precárias de vida urbana também propicia a existência de problemas de saúde com o agravamento das situações de risco relativas às mudanças do clima. Tais problemas referem-se tanto aos desastres provocados por enchentes, inundações e deslizamentos, como por ondas de calor, com o aumento do número de mortes, danos físicos (traumas) ou doenças (respiratórias, diarreias, leptospirose, cardiovasculares, entre outras). A mortalidade por doenças isquêmicas do coração, por pneumonia e bronquite, enfisema e asma é desigual na distribuição espacial, pois os agrupamentos altos ocorrem nas periferias pobres e não de forma aleatória, configurando uma situação de injustiça social e ambiental.
Em que pese o modelo de desenvolvimento predatório ao meio ambiente colocar em risco a existência das gerações futuras, para uma parte da população, especialmente mulheres e negros, os efeitos das alterações climáticas e a deterioração das condições de vida já é uma realidade presente no cotidiano. A promoção da equidade, além de obrigação constitucional, vem acompanhada de inúmeras oportunidades e benefícios para todos.
Assim, é necessário que a ação pública centrada em políticas ambientais seja implementada com um olhar interseccional, articulando problemas relacionados ao racismo estrutural e às desigualdades de gênero. Sabe-se, porém, que toda ação pública tem um custo, sendo imprescindível aportar recursos financeiros para garantir os direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs.
Sem uma gestão consistente das receitas e despesas públicas, em linha com metas específicas para intervenções transformadoras, não há implementação de políticas. Em um cenário de escassez de recursos, é imprescindível que se mobilize estratégias capazes de fomentar a ação climática sensível ao gênero e à raça de forma sinérgica, proporcionando uma gestão eficiente dos meios financeiros e do instrumental disponível para aplicá-los.
É de responsabilidade dos governos municipais formular políticas específicas de habitação, saneamento, mobilidade urbana e proteção e defesa civil. Para tanto, devem contar com instituições com estruturas e pessoal qualificado para lidar com os desafios e conflitos inerentes aos diversos interesses envolvidos.
Com relação à política de proteção e defesa civil, compete ao Município coordenar ações de prevenção, identificar, mapear e fiscalizar a ocupação de áreas de risco, bem como incorporar ações de defesa civil no planejamento municipal e atender as pessoas afetadas por eventuais desastres ou incidentes.
Outra competência é cuidar de seu patrimônio e promover serviços básicos que garantam a qualidade de vida de seus habitantes, inclusive durante enchentes e ondas de calor. Para isso, é responsabilidade municipal cuidar da assistência social e da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência, idosos e crianças. O que engloba, também, prover espaços seguros, como os cooling centers diante do calor extremo, e com acessibilidade para todos.
Por fim, o governo local deve proteger seu patrimônio cultural e natural. O meio ambiente pode ser preservado a partir de medidas que diminuam o impacto da vida urbana na natureza e da manutenção da presença de árvores no meio urbano, que aliás providenciam uma série de serviços ecossistêmicos. Ajudam a proteger as pessoas e suas propriedades dos impactos das chuvas, promovendo a infiltração no solo e reduzindo o volume e a velocidade do escoamento superficial da água, assim reduzem a frequência e a intensidade das inundações e evitam a erosão. Podem contribuir para amenizar a temperatura ao fornecer sombra e por meio da evapotranspiração, reduzindo o efeito das ilhas de calor e resfriando as cidades durante as ondas de calor cada vez mais frequentes e perigosas. E podem até mesmo purificar o ar, coletando material particulado em suas folhas e removendo alguns gases nocivos.
Atenção a essas medidas, sobretudo se você mora em uma dessas cidades!
Segundo o Relatório da Climate Central, essas 15 cidades apresentaram maior anomalia (aumento) de temperatura nos últimos meses.
Vila Velha - 1,15°C
Goiânia - 0,99°C
Campina - 0,93°C
Recife - 0,90°C
Salvador - 0,84°C
Maceió - 0,77°C
Manaus - 0,70°C
Belém - 0,63°C
Curitiba - 0,6°C
Brasília - 0,59°C
Guarulhos - 0,56°C
São Paulo - 0,54°C
Rio de Janeiro - 0,47°C
Porto Alegre - 0,46°C
São Gonçalo - 0,17°C
Mas o que é exatamente uma cidade resiliente?
É onde a população participa, decide e planeja sua cidade junto com as autoridades locais, tendo em conta suas capacidades e recursos.
Possui um administrador público competente e responsável que garante uma urbanização sustentável com a participação de todos os grupos populares.
É onde muitos desastres são evitados em função de que toda sua população vive em residências e bairros providos de infraestrutura adequada (abastecimento de água, saneamento básico, eletricidade, drenagem e estradas em boas condições) e serviços básicos (escolas, coleta de lixo, serviços de emergência). Suas estruturas atendem aos padrões de construção e não geram a necessidade de ocupação desordenada em áreas de encosta, ou sujeitas a inundação.
Entende seus riscos e desenvolve um forte trabalho de educação com base nas ameaças e vulnerabilidades a que seus cidadãos estão expostos.
Toma medidas de prevenção e preparação a desastres com objetivo de proteger seus bens – pessoas, residências, mobiliários, herança cultural e capital econômico – e está preparada para minimizar perdas físicas e sociais decorrentes de eventos climáticos extremos.
Realiza investimentos necessários em redução de riscos e é capaz de se organizar antes, durante e depois de um desastre.
Está apta a restabelecer rapidamente seus serviços básicos, bem como retomar sua atividade social, institucional e econômica depois de um desastre.
Entende que as mudanças climáticas também devem ser consideradas em seu planejamento urbano.
Como chegar lá?
Dez passos essenciais para construir cidades resilientes: Uma campanha da ONU lista os passos essenciais para construção de cidades resilientes que podem ser implantados por prefeitos e gestores públicos locais. As ações originam-se das cinco prioridades do Quadro de Ação de Hyogo, um instrumento chave para a redução de riscos de desastres. Alcançando todos, ou mesmo alguns dos Dez Passos, as cidades passarão a adotar uma postura resiliente.
Estabeleça mecanismos de organização e coordenação de ações com base na participação de comunidades e sociedade civil organizada, por meio, por exemplo, do estabelecimento de alianças locais. Incentive que os diversos segmentos sociais compreendam seu papel na construção de cidades mais seguras com vistas à redução de riscos e preparação para situações de desastres.
Elabore documentos de orientação para redução do risco de desastres e ofereça incentivos aos moradores de áreas de risco: famílias de baixa renda, comunidades, comércio e setor público, para que invistam na redução dos riscos que enfrentam.
Mantenha informação atualizada sobre as ameaças e vulnerabilidades de sua cidade; conduza avaliações de risco e as utilize como base para os planos e processos decisórios relativos ao desenvolvimento urbano. Garanta que os cidadãos de sua cidade tenham acesso à informação e aos planos para resiliência, criando espaço para discutir sobre os mesmos.
Invista e mantenha uma infraestrutura para redução de risco, com enfoque estrutural, como por exemplo, obras de drenagens para evitar inundações; e, conforme necessário, invista em ações de adaptação às mudanças climáticas.
Avalie a segurança de todas as escolas e postos de saúde de sua cidade, e modernize-os se necessário.
Aplique e faça cumprir regulamentos sobre construção e princípios para planejamento do uso e ocupação do solo. Identifique áreas seguras para os cidadãos de baixa renda e, quando possível, modernize os assentamentos informais.
Invista na criação de programas educativos e de capacitação sobre a redução de riscos de desastres, tanto nas escolas como nas comunidades locais.
Proteja os ecossistemas e as zonas naturais para atenuar alagamentos, inundações, e outras ameaças às quais sua cidade seja vulnerável. Adapte-se às mudanças climáticas recorrendo a boas práticas de redução de risco.
Instale sistemas de alerta e desenvolva capacitações para gestão de emergências em sua cidade, realizando, com regularidade, simulados para preparação do público em geral, nos quais participem todos os habitantes.
Depois de qualquer desastre, vele para que as necessidades dos sobreviventes sejam atendidas e se concentrem nos esforços de reconstrução. Garanta o apoio necessário à população afetada e suas organizações comunitárias, incluindo a reconstrução de suas residências e seus meios de sustento.
Não deixe de levar esse e esse material ao seu candidato! E faça com que ele se comprometa em executar medidas de adaptação.
E o que diz a legislação?
A partir da instituição da Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC) em 2009, o tema começou a ganhar contornos de uma política de Estado. A PNMC aloca papéis específicos, incluindo financiamento, engajamento público e coordenação intergovernamental, para autoridades federais e dispõe de arranjos institucionais para apoiar a regulamentação e a implementação de políticas. Embora não imponha obrigações aos municípios, não deixa de citá-los:
Art. 4º A Política Nacional sobre Mudança do Clima - PNMC visará:
V - à implementação de medidas para promover a adaptação à mudança do clima pelas 3 (três) esferas da Federação, com a participação e a colaboração dos agentes econômicos e sociais interessados ou beneficiários, em particular aqueles especialmente vulneráveis aos seus efeitos adversos.
Ainda, durante as negociações da COP28, enfatizou-se a importância da meta global de adaptação (GGA) de aumentar a capacidade adaptativa, fortalecer a resiliência e reduzir as vulnerabilidades. Objetivo estabelecido pelo artigo 7 do Acordo de Paris, do qual o Brasil é signatário. Assim, foi determinado que países devem tomar medidas de adaptação transformativas e que tenham seus planos de adaptação e políticas relevantes até 2025 e avançar na implementação e operacionalização de sistemas de monitoramento, avaliação e aprendizado sobre adaptação até 2030.
No entanto, quanto ao âmbito local, tramitam no Congresso Nacional algumas propostas. Destaca-se o PL das Cidades Resilientes (PL 380/2023), que apesar da simplicidade é potente, e o PL que estabelece diretrizes gerais para a elaboração dos planos de adaptação à mudança do clima (PL 4129/2021), sejam eles municipais, estaduais e nacional. Há que se dizer que este último foi muito bem elaborado, embora tenha sofrido modificações que o fragilizaram durante o trâmite.
O primeiro, proposto pela dep. Erika Hilton, altera o Estatuto da Cidade, incorporando normas que fomentam a construção de cidades resilientes. A deputada assinala em sua justificativa que o Fórum Nacional da Reforma Urbana (FNRU) destaca que as cidades desempenham um papel central na enfrentamento dos desafios ligados às alterações do clima, pois os eventos climáticos extremos estão se tornando cada vez mais evidentes em seus territórios. De acordo com as organizações e grupos sociais que integram o FNRU, os efeitos dessas crises climáticas são particularmente sentidos pelos habitantes mais vulneráveis das cidades, especialmente aqueles que vivem nas periferias, bem como pelas comunidades indígenas, negras e mulheres, evidenciando o fenômeno do racismo ambiental. Portanto, é imprescindível incluir nos instrumentos de desenvolvimento, planejamento urbano e ordenamento territorial medidas que possam mitigar os impactos e permitir a adaptação às mudanças climáticas, contribuindo para a construção de cidades resilientes.
Nesse sentido, a proposta legislativa visa influenciar a relação entre o planejamento urbano-territorial e as mudanças do clima, modificando o Estatuto das Cidades para orientar os planos diretores no sentido de abordar especificamente as mudanças climáticas em suas diretrizes e instrumentos de gestão urbano-territorial, a fim de responder aos eventos climáticos extremos, reduzir vulnerabilidades e proteger a população dos possíveis impactos das mudanças climáticas. A proposta já foi aprovada na Câmara e aguardando apreciação pelo Senado Federal.
O segundo projeto de lei, da dep. Tabata Amaral e outros, dispõe sobre diretrizes gerais para a elaboração de planos de adaptação, com o objetivo de implementar iniciativas e medidas para reduzir a vulnerabilidade dos sistemas ambiental, social e econômico frente aos efeitos atuais e esperados da mudança do clima. O projeto visa a elaboração dos planos estaduais e municipais, com prioridades para os municípios mais vulneráveis, bem como estabelecerá ações e programas para auxiliar os entes federados na formulação e implementação de seus respectivos planos.
Estabelece a garantia de participação social na coordenação e gestão dos planos, assim como a adoção de “soluções baseadas na natureza”, a exemplo da restauração florestal e da criação de áreas protegidas urbanas, como parte das estratégias de adaptação, considerando os benefícios adicionais e sinergias com as ações de mitigação. Assegura, também, a implementação das estratégias traçadas, prioritariamente nas áreas de segurança alimentar e nutricional, hídrica e energética, com vistas ao desenvolvimento socioeconômico alinhado à redução das desigualdades sociais. A proposta já foi aprovada na Câmara e aguardando apreciação pelo Senado Federal.
Aguardemos, ansiosos e esperançosos, pelas aprovações, sanções e vigências dos projetos.
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