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Foto do escritorA Vida no Cerrado

rios de vida


Por momentos, questiono se este é, realmente, o meu corpo.


por Maria Alice, Núcleo de Comunicação e Engajamento


Vale das Araras, em Cavalcante (GO)


Eu habito o tempo há milhões de anos. 65, para ser exata. Vivi muita coisa, acompanhei tantas mudanças, acostumada aos caminhos que a Terra trilha. Caminhos em velocidade gentil, mesmo que seus fenômenos não necessariamente o sejam.


Nunca fez sentido tentar contar quantos seres compartilharam existências em mim. Uma infinidade. Bichos imensos, tempos gelados, solo colorido, plantas que fazem cócegas.


Há dez mil anos atrás, o ser humano olhou para mim em busca de proteção. E eu dei.


Em meus planaltos e chapadas, encontraram animais para suas caças e frutos para suas coletas. Em agradecimento, eles me presentearam com pinturas e instrumentos guardados pelo meu amigo tempo.


Me chamam de Cerrado.

Minha pele vermelha se arrepia com instabilidades climáticas, algumas delas a criatividade humana ainda tenta dimensionar.


Entre revoluções biogeográficas, extinguiram-se animais bem maiores do que aqueles que os cerratenses interagem hoje. Espécies novas surgiram, traços linguísticos se diversificaram, florestas se abriram.


Senti o regresso dos ventos gélidos. Correntes de ar quente dançaram (e continuam) nesta terra chamada Brasil. Ardeu na boca as flutuações entre aridez e a umidade, cantei as mudanças tropicais com voz de canção de ninar para os meus humanos.


Foram milênios, tive muito tempo para me acostumar.


Já velha, hoje me assusto com a rapidez com que meu corpo desidrata. Meus riachos não lacrimejam e espécies queridas - algumas delas nem foram conhecidas - tropeçam na linha da vida.

É tão rápido que não dá tempo de cantar. Tenho dores crônicas, as quais mal consigo atribuir nome. Minha pele seca por mais meses do que o natural, o calor confunde meus seres.


É tão rápido que arde um corpo em chamas e sem floresta. Os incêndios transformam meus lagartos em estátuas de carvão, suas bocas interrompidas no grito de denúncia: foi crime.


Por momentos, questiono se este é, realmente, o meu corpo.


Quem eu sou?


Porque, nesses milhares de anos, me aceitei como berço da vida, herança das águas. Não aceito ser conhecida como vale da morte.

Não pode acabar aqui. Eu ainda apreciarei o cheiro de muitos pés de buriti centenários. Quero ver brilhar na barriga de um lobo guará sementes de araticum, sentir as raízes gentis e pequenas do ancião capim-barba-de-bode.


Quero continuar a ser sementes, frutos e canções para os meus povos cerratenses. Ser agricultura, cascas grossas e plural na minha biodiversidade. Quero manter-me brisa de cachoeira.


Escuto meus humanos falarem que sou importante também para o equilíbrio de todo o planeta. Quão grandioso é isso?


Então…

Por que me sinto tão mal?


Por que a perda, que antes era natural e significa transformação em vida, agora parece ceifada com a textura de imensas correntes metálicas?


Nesta mudança climática - mais assustadora do que qualquer outra sentida por mim, nos meus milhões de anos - posso ser o que vocês precisam. Se querem que eu seja repositório de carbono, eu serei. Aproveitem meus estoques e sumidouros de gases abaixo do solo.


Mas, por favor, me deixem de pé.


Vocês precisam tanto de água, então abracem - e protejam - meus lençóis freáticos.


Eu sou mãe de São Francisco, Tocantins e Prata. Minhas águas são límpidas e resilientes, assim como meus povos e minhas raízes compridas.


Não sujem minha terra com sangue de inocentes, nem joguem armas criminosas em meu solo agricultor.

Eu sou rios de vida. Não me transformem em vale da morte.



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