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Uso medicinal de plantas nativas do Cerrado

Por: Ana Maria Nascimento Gonçalves - Núcleo de Educação Socioambiental


De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a planta medicinal se caracteriza como “uma espécie vegetal, cultivada ou não, utilizada com propósitos terapêuticos" [1] . No entanto, as plantas medicinais pouco necessitaram de uma definição formal para compor os cuidados com a saúde do ser humano. A manipulação dessas plantas traçou uma linha evolutiva concomitante ao ser humano primitivo, que através da observação pôde adquirir conhecimento suficiente para fazer uso das plantas para curar-se [2]. Essa prática foi comum e, majoritariamente, a única no campo da medicina até meados do século XIX, quando o primeiro medicamento sintético foi desenvolvido em laboratório, o hidrato de cloral - um sedativo e hipnótico [3].


Desde então, a indústria farmacêutica cresceu e não tem previsão alguma de desacelerar. Porém, isso não significa que as plantas medicinais perderam o seu lugar de cura, pelo contrário, elas continuam sendo de extrema importância e a grande maioria das plantas espalhadas pelo mundo ainda não tiveram seu potencial médico explorado por cientistas. Isso se deve, em grande parte, pela extensa flora que cobre esta Terra que nos abriga. Especialmente em grandes hotspots de biodiversidade, onde a vegetação é rica, densa e única, a presença de plantas medicinais também pode apropriar-se de tais adjetivos. E quando falamos de “grandes hotspots de biodiversidade”, é claro que o Brasil não fica de fora desse contexto, muito menos o nosso Cerrado.


A flora do Cerrado chama atenção para a sua diversidade de plantas medicinais, e o conhecimento popular é a principal parte envolvida nos estudos etnobotânicos do bioma, desenvolvendo um sistema próprio de produção de medicamentos como pomadas, xaropes, soluções tópicas cicatrizantes e fungicidas, entre outros [4].




Ao nordeste do estado de Goiás, no município de Alto Paraíso de Goiás, a atividade rural tradicional da agricultura e pecuária lidera a economia e o uso de plantas medicinais está presente em abundância, com os principais usos sendo para enfermidades cotidianas, em trabalhos terapêuticos alternativos e por médicos naturalistas. Exemplos muito populares na região incluem as nativas : a Cariniana estrellensis, de nome popular jequitibá, com ação contra doenças venéreas, diarreias, hemorragia uterinas, entre outros; a Baccharis dracunculifolia, conhecida como alecrim-do-campo, combatendo febres; e a Croton urucurana, a sangra-d’água, abrangendo o tratamento de câncer e feridas externas. Essas são apenas três dos 69% da biodiversidade nativa que foi declarada como útil para os moradores. [4]


Cariniana estrellensis (Raddi) Kuntze - LECYTHIDACEAE - jequitibá-branco - Foto: João Medeiros


Baccharis dracunculifolia DC.ASTERACEAE - alecrim-do-campo - Foto: Mauricio Mercadante


Croton urucurana Baill.EUPHORBIACEAE - sangra-d'água - Foto: Mauricio Mercadante


Com tanta abundância e variedade de plantas medicinais, o potencial econômico de estruturas locais para desenvolver a produção e o comércio dessas plantas é enorme e muito possível. Parcerias com indústrias alimentícia, farmacêutica e fitoterápicas, assim como iniciativas não governamentais são extremamente favoráveis à economia local, desde que elaboradas e postas em prática de maneira responsável e estratégica do ponto de vista comercial. Infelizmente, esse ainda é um obstáculo para o Brasil. [4]


Virando os olhos para o Cerrado mineiro, podemos enxergar outras questões. No município de  Paraopeba (com território 100% cerratense), o Quilombo Pontinha busca tratar de muitas enfermidades com plantas medicinais, já que não conseguem fácil acesso a remédios sintéticos e a Unidades Básicas de Saúde, devido à deficiência no transporte local. É o único recurso disponível para eles. Em um estudo conduzido por Fabiane Ramos Moreira e Francielda Queiroz Oliveira em 2017, moradores da Comunidade Quilombola citam 70 espécies de plantas para o tratamento de doenças, sendo que dessas, 15,8% não foram possíveis de estimar a sua identidade botânica até aquele período e 21,4% já tinham registro na ANVISA. Ainda, todos os conhecimentos sobre as indicações de uso, a parte da planta a ser extraída e a forma como de uso, segundo eles, foram adquiridos com experiências próprias ao longo de gerações, caminho esse que é natural quando falamos de plantas medicinais e conhecimento popular. [5]


Algumas das plantas medicinais e seus usos relatados foram: o chá da raiz do cajuzinho do cerrado (Anacardium Humile) para tratar dores de dente, o chá da folha do pequi (Caryocar brasiliense) para tratar tosse e o chá da folha do cai na lama chapodó, de identidade botânica desconhecida, para o tratamento da diarreia. [5]


Anacardium Humile - cajuzinho-do-cerrado


Caryocar brasiliense - Pequi - Foto: Marcelo Kuhlmann


Nesse âmbito, é importante destacar a importância da preservação dos saberes populares e o conhecimento que eles podem proporcionar à ciência brasileira. Comunidades tradicionais, como a citada neste texto, possuem uma relação íntima com a natureza e a exploram, com o perdão da palavra, de tal maneira que a ciência muitas vezes pode não acompanhar por si própria. É preciso que esse diálogo seja valorizado e incorporado nas grandes instituições de pesquisa do país.


No contexto em que o Cerrado se encontra atualmente, estamos deixando todas essas oportunidades escapar pelas nossas mãos. A savana mais biodiversa do planeta está se desfazendo e, com ela, todo o potencial farmacêutico que sustenta e cura milhares de comunidades deixadas à mercê da política do desmatamento que governa o Brasil nos últimos anos. A medicina está e permanecerá enraizada na natureza, com o Cerrado sendo uma de suas principais e mais ricas ramificações brasileiras. Valorização, oportunidade, preservação e políticas públicas são o alimento que precisamos para manter essa base de pé.


REFERÊNCIAS



ALMEIDA, MZ. Plantas medicinais: abordagem histórico-contemporânea. In: Plantas Medicinais [online]. 3rd ed. Salvador: EDUFBA, 2011, pp. 34-66. ISBN 978-85-232-1216-2. Available from SciELO Books .  


JONES, AW. Early drug discovery and the rise of pharmaceutical chemistry. Drug Test Anal. 2011;3(6):337–344. doi: 10.1002/dta.301

Montinari MR, Minelli S, De Caterina R. The first 3500 years of aspirin history from its roots — A concise summary. Vascul Pharmacol. 2019;113:1–8. doi: 10.1016/j.vph.2018.10.008


DOMINGUES DE SOUZA, C.; FELFILI, J. Uso de plantas medicinais na região de Alto Paraíso de Goiás, GO, Brasil. Acta bot. bras, v. 20, n. 1, p. 135–142, 2006.


MOREIRA, F. R.; OLIVEIRA, F. Q. LEVANTAMENTO DE PLANTAS MEDICINAIS E FITOTERAPICOS UTILIZADOS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA - PONTINHA DE PARAOPEBA, MINAS GERAIS, BRASIL. Revista Brasileira de Ciências da Vida, v. 5, n. 5, 14 dez. 2017.



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