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capítulo um de...

O quanto estamos
vulneráveis no Distrito Federal

Na capital federal, riscos climáticos escancaram vulnerabilidade e alertam para urgência na adaptação das cidades e do meio rural

Maria Alice, A Vida no Cerrado. 18 de dezembro de 2023.

Por aparecer no mapa do Brasil como um quadradinho no meio do Planalto Central, sem registro de grandes inundações ou deslizamentos de terras, o Distrito Federal não é um território com destaque no debate das mudanças climáticas no país. Entretanto, a região reúne desigualdades sociais que potencializam as vulnerabilidades decorrentes de eventos extremos associados ao clima, tais como o estresse hídrico, as ondas de calor, os incêndios florestais e os riscos geológicos. 

 

Pegadas nesta terra contam histórias de vulnerabilidade climática.

Gaia pula a janela da pequena casinha - suponho que o espaço seja a despensa agrícola da chácara. Minha atenção se desvia, por segundos, da conversa com Maria Aucineide Silva. É urgente observar a gata preta se aproximar, faceira e alheia aos latidos dos cachorros no canil. Magnetizada, estico as mãos para oferecer carinho à pequena divindade.

 

O ar tem cheiro de vento e bolo de laranja.

 

Gaia, em homenagem à deusa grega Mãe-Terra. Evoco sua memória para escrever uma reportagem cuja alma é a Terra, sua homônima, e o corpo é o Cerrado, seu ancião. Não poderia esquecer nem se quisesse, porque carrego retinas gêmeas às de Ailton Krenak, quem diz:

 

 

 

É a Natureza do Distrito Federal, por meio de suas pessoas, histórias, memórias e cores, que guiará esta reportagem pela terra vermelha.

Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja  natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. 

Campo no Lago Oeste, na Chapadinha, região com forte atividade de agricultura familiar.*

*Todas as imagens sem créditos são de nossa autoria.

capítulo um

Emissões de gases do efeito estufa no Distrito Federal

Trânsito na Estrada Parque Taguatinga, às 8h50, na entrada do Octogonal.

O planeta, em seus aproximados 4,5 bilhões de anos, já passou por muitas mudanças. Transformações aconteceram e acontecem por diversos fatores, como os processos naturais de glaciação, vulcanismo, o movimento das placas continentais e outros eventos geológicos.

 

Ao longo dos últimos dez mil anos, nossa humanidade criou ferramentas capazes de manipular a Natureza, as quais interferem em diferentes intensidades e atendem a diversos interesses (sobrevivência humana é um deles). Há um século, desenvolvemos tecnologias fortes o suficientes para provocar mudanças ambientais sem precedentes e irreversíveis, incluindo alterações nos ciclos biogeoquímicos do planeta. Recordes no aumento de temperatura, chuvas catastróficas, alagamentos e enchentes drásticas, secas históricas e ondas de calor são consequências extremas de alterações do clima causadas pelo impacto das ações humanas na Terra.

 

A partir de 1850, o aumento da liberação de gases poluentes na atmosfera - com destaque para o CO2, dióxido de carbono - potencializou e agravou os efeitos das mudanças climáticas. Por conta das emissões decorrentes do desmatamento, o Brasil está em quarto lugar no ranking de maior emissor global na história. Os dados fazem referência ao período analisado de 1850 a 2021, de acordo com o levantamento do think tank, do site de notícias climáticas Carbon Brief.

 

Os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar de emissor (responsável por 20% da liberação de CO2 planetária), seguido pela China (11%), Rússia (7%), Brasil (5%) e Indonésia (4%). O projeto considera o emitido pela queima de combustível fóssil, mudanças de uso do solo, produção de cimento e desmatamento.

 

Aspectos são indissociáveis, além do desequilíbrio ambiental, nosso presente e futuro é desenhado pela desigualdade nas relações sociais. O 1% mais rico do mundo (equivalente a 77 milhões de pessoas) emite a mesma quantidade de gases poluentes que 66% das pessoas no planeta - ou seja, a mesma quantidade que 5 bilhões de habitantes da Terra, de acordo com o relatório Igualdade Climática: um Planeta para os 99%, produzido pela Oxfam Brasil. Os dados são referentes a 2019: nesse ano, apenas este 1% foi responsável por 16% das emissões globais de carbono.

 

Os números são alarmantes: as previsões indicam que, em 2030, esta pequena parcela da população poderá emitir 22 vezes mais do que o limite seguro (marca de liberação de gases estipulada para  manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C). As estimativas também sugerem que a taxa de emissões desta minoria, em 2019, são suficientes para causar 1,3 milhão de mortes excessivas devido ao calor entre 2020 e 2100.

 

A pesquisa ressalta a justiça climática como algo basal no processo de redução das emissões e na construção de uma sociabilidade sustentável. Quem polui mais, deve financiar a transição energética, afinal, as emissões anuais do 1% mais rico do planeta anulam a redução de carbono de quase um milhão de turbinas eólicas. Nesta lógica, a Oxfam calcula que “um imposto global de 60% sobre os rendimentos do 1% mais rico do mundo arrecadaria US$ 6,4 trilhões para financiar energias renováveis”.

 

No primeiro dia da Conferência das Partes de 2023 (COP28), em Dubai, nos Emirados Árabes, a elite climática começa a ser cobrada: no primeiro dia do evento (1/12), foi aprovado o Fundo de Perdas e Danos, criado na COP27, no Egito. Alemanha, Reino Unido, Emirados Árabes, Estados Unidos e Japão se comprometeram a financiar o Fundo, ao qual a primeira doação é de US$ 400 milhões de dólares e começará a ser pago em 2024.

 

A partir de setembro de 2023, as ondas de calor chamaram a atenção dos brasileiros, propiciando espaço para o relevante debate de eventos extremos, contextos, causas e efeitos. O ano também foi marcado pelas secas e inundações no país. No sul global, envolto e inserido no Cerrado, os habitantes do Distrito Federal puxam pela memória alguns acontecimentos decorrentes das mudanças do clima pela memória.

 

A grave crise hídrica entre os anos de 2016 e 2018, quando os principais reservatórios de abastecimento marcaram nível abaixo do volume útil. Enxurradas e enchentes marcaram 2021: durante a pandemia da Covid-19, moradores da Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante, foram resgatadas quando o córrego do Riacho Fundo transbordou. Ruas alagadas no Sol Nascente e Pôr do Sol, em Taguatinga e Vicente Pires são rotina quando chove.

 

Desde o começo de setembro, as intensas e pungentes ondas de calor te fazem considerar comprar um ar condicionado ou ventilador.  Perguntas como “será que cabe no orçamento?” e “como fica a conta de energia?” acompanham a canseira física decorrente da temperatura. Nossos mais velhos reclamam, mais indispostos ou irritadiços do que o normal, as dores crônicas agravadas pelo desconforto térmico não viram manchete.

 

Outros acontecimentos, sim. A redução das chuvas em outubro e a seca violenta na Amazônia fazem o peito se apertar, milhares de vidas sofrer e a ansiedade climática torcer o estômago.

 

Essas pegadas cotidianas já marcam, em terra e lama vermelha, o seu acordar e adormecer diários. São os efeitos das mudanças do clima no mundo, no Brasil, no Centro-Oeste, no Distrito Federal, na sua rua. A causa disso tudo? Emissão dos gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera terrestre.

 

Quadradinho cerratense lar de quase três milhões de pessoas, são 2.817.381 habitantes no território de 5.760,784 quilômetros quadrados do DF, de acordo com o Censo de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A atmosfera terrestre, entretanto, não distingue as fronteiras nacionais e internacionais convencionadas pela humanidade.

 

Localmente, o principal emissor de GEEs é o setor de mobilidade - ligado ao de energia -, por conta da queima de combustíveis fósseis, derivados do petróleo. O setor de mudanças e transições de uso do solo ocupa o segundo lugar e, em terceiro, está o de resíduos e efluentes, de acordo com o Inventário de Gases do Efeito Estufa no Distrito Federal (2005-2018), divulgado em 2021.

Em 2018, o DF emitiu 9.518.762 milhões de toneladas de carbono equivalente (tCO2e). 48% é responsabilidade do setor energético; 23% decorrentes da mudança do uso da terra e florestas; 14% por resíduos e efluentes; 11% de processos industriais; e, por fim, 4% do setor agropecuário. 

 

Comparado ao cenário nacional, a capital não é um grande problema de emissão. No mesmo ano, o país emitiu quase dois bilhões de toneladas de carbono equivalente (1.989.409.556 tCO2e), em que o setor mais poluente é o de mudanças de uso do solo. O levantamento é do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), maior plataforma de monitoramento do assunto na América Latina.

 

Ao compararmos o cenário de emissão distrital com os dados do SEEG, o setor energético se mantém com a infeliz medalha de ouro. Há uma divergência com o Inventário quanto ao segundo lugar: pelo SEEG, o setor de resíduos ocupa a posição, seguido pelo bronze processos industriais. Mudanças no uso do solo e agropecuária, mesmo se somados juntos, ainda não alcançam a marca de emissão do terceiro lugar.

Talvez as consequências mais explícitas das mudanças climáticas sejam a intensidade e frequência da estiagem no Distrito Federal, acompanhada pelo aumento da temperatura média e os fenômenos de ondas de calor. Esta última é marcada desconfortavelmente na memória da população do Distrito Federal desde setembro deste ano. No caminho histórico das estações, o mês nove é quando o calor deve enfraquecer, para retornar a precipitação no quadradinho. Porém, estamos acompanhando o protelar da seca e a saudade das chuvas.

 

O segundo semestre de 2023 está marcado pelo fenômeno das ondas de calor no Brasil. No dia 13 de novembro, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu alerta de perigo para 13 estados e o Distrito Federal, avisando que ao menos 1.100 municípios brasileiros seriam impactados por este evento extremo.

 

Gustavo Baptista, especialista em Sensoriamento Remoto e experiente pesquisador em questões ambientais urbanas, explica que uma das razões da intensidade e duração das ondas de calor - especificamente, de setembro até novembro - é a conjugação do El Niño intenso com o aquecimento anômalo do Atlântico Norte e do Atlântico Sul. Esses dois eventos são conhecidos por controlar o clima.

 

"Devemos considerar a intensidade do fenômeno El Niño, mas isso é resultado de intervenções humanas. É um cenário em que as mudanças climáticas batem na porta e entregam um boleto caro, cobrando nossas ações humanas", complementa o professor do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (IG/UnB).

 

Diante do cenário, fica a questão: ainda há tempo? O pesquisador responde um “claro” confiante, seguido pela condição de estratégias inteligentes para tal.

Placa de atenção para lombada, no caminho para a Chácara Imperial, em Brazlândia. 

Mobilidade Urbana

quarteto de emissões

Sempre sentados juntos no ônibus das oito horas, duas pessoas compartilham um par de fones de ouvido. Fico curiosa para saber qual a trilha sonora pessoal e urbana, tocada ao longo dos 50 minutos da viagem de Vicente Pires até a Rodoviária do Plano Piloto. Ela, de cabelo curto, denso e grisalho, assiste à visão cotidiana pela janela: o percurso da marginal da EPTG, o trânsito, o sol matutino, a terra vermelha exposta pelas obras. Ele, de cabelo levemente mais curto em comparação ao dela e sempre em um rabinho de cavalo fino, é quem cuida das músicas. No final do Eixo Sul, tira calma e cuidadosamente os fones, os enrola e guarda na bolsa.

 

Estamos quase no destino final. Estamos no começo de um dia.

A caminho de uma das paradas na Asa Sul, na sombra de árvores altas e floridas, vestidas em amarelo.

No Distrito Federal, o ano com maior quantitativo de emissão foi 2015. Pelos dados do SEEG, foram 8,8 milhões de toneladas (8.804.264) liberadas na atmosfera. Apenas o setor energético - responsável pela produção de energia elétrica e transportes ferroviário, rodoviário e aéreo - emitiu 5,1 milhões de toneladas (5.133.303) de gases do efeito estufa, equivalente a 58% do total acumulado por todos os setores. O transporte rodoviário é o responsável pela maior parte da emissão, principalmente por conta dos veículos particulares.


Baseando-nos no Inventário de GEEs, no primeiro ano da análise, em 2005, o transporte rodoviário representou 60% das emissões totais (gases CO2 , CH4 e N2O) no setor. Enquanto o setor inteiro emitiu 3.628,955 mil toneladas, apenas a categoria rodoviária liberou 2.178,012 mil toneladas. Em 2018, último ano analisado, foram lançadas 2.529,581 toneladas de carbono equivalente (mil tCO2e) decorrentes do transporte nas estradas. O total de emissão do setor energético no período foi de 4.580,768 mil tCO2e, o que coloca o transporte rodoviário como agente emissor de 55,2% do montante, em 2018.

Como criança que de repente se espicha, a intensidade do trânsito no Distrito Federal salta aos olhos dos trabalhadores e estudantes. É mais um fator estressante para quem se locomove diariamente pelas principais estradas locais - Via Estrutural, Parque Taguatinga (EPTG) e Parque Núcleo Bandeirante (EPNB), responsáveis por conectar o caminho do trabalho e escola até nossas casas.

 

O cenário é estressante o suficiente para fazer com que algumas pessoas considerem desistir do trabalho com transporte particular, como é o caso de Hélio Júnior, que atua nesta área há sete anos.

 

“Eu estou realmente pensando em desistir do trabalho por aplicativo, porque está complicado. O retorno é muito pequeno e, com a alteração no clima, os desequilíbrios como calor excessivo trazem um desconforto muito grande, o cansaço é intenso. No trânsito, isso gera perigo. Quando chove, o trânsito se torna ainda pior, especialmente devido, também, às obras que estão acontecendo no DF”, relata Hélio Júnior.

 

Cumprindo a agenda de infraestrutura rodoviária, desde 2019, o Governo do Distrito Federal (GDF) mobilizou mais de R$400 milhões em 91 obras locais. Iniciada em dezembro de 2022, apenas a revitalização da Estrutural custou R$55 milhões - o investimento geral é de aproximadamente R$80 milhões. Estima-se que, após essa pavimentação, a via não precisará de reformas nos próximos 20 anos.

Via Estrutural em obras. Trânsito na altura da Cidade do Automóvel, às 16h, pouco tempo depois da chuva.

Cinna Luzia Almeida, graduanda em Serviço Social na Universidade de Brasília (UnB), morou por 22 anos em Taguatinga. Suas memórias são de desconforto ao pensar trânsito do Distrito Federal - especialmente na Estrutural e EPTG. 

 

"O trânsito, que já era intenso, se transformou em algo detestável. Antes da obra, ir para a UnB de ônibus demorava aproximadamente 1 hora e 30 minutos. Neste ano, outras obras foram sendo desenvolvidas, houve momentos em que o trajeto de Taguatinga para o Eixo Monumental, no Plano, levou três horas", desabafa.

 

O fluxo na Estrada Parque Taguatinga se intensificou - congestionamento para ir e voltar do Plano Piloto não é mais característica apenas dos horários de pico.   

 

"Você fica num dilema entre utilizar o transporte  público ou um individual e pensa “vou usar o carro porque chego mais rápido”. Realmente, mas todos os dias as rodovias estão engarrafadas por acidentes de automóvel. E é inevitável, com o tanto carro nas ruas",  percebe a estudante.

 

"No meio urbano, o desconforto térmico causado pelo calor afeta muito as pessoas que utilizam o transporte público. Isso já é uma forma de redução da qualidade de vida: chega no trabalho suado, cansado e estressado. Na volta, passa pelo mesmo processo de novo. Adicionado a isso, estão todas as outras questões de mobilidade urbana – que são péssimas também", analisa Vitor Sena, biólogo, cerrativista e coordenador do Núcleo de Advocacy da organização da sociedade civil A Vida no Cerrado. 

 

Saúde e mudanças climáticas são como carne e unha na construção de caminhos para mitigar os eventos extremos e adaptar os espaços para tal contexto. O cenário climático dificulta a qualidade de vida do casal do ônibus, aquele que compartilha os fones de ouvidos, e de mais da metade da população do DF que utiliza transporte público diariamente

 

São centenas de milhares de pessoas que trilham seus caminhos em um, dois ou mais dos 2,8 mil ônibus do Distrito Federal, em uma, duas, três ou mais das 840 linhas. Sem contar os residentes do entorno que trabalham ou estudam em alguma das regiões administrativas e enfrentam preços altos para o transporte rodoviário lotado, demorado e de baixa qualidade. Os que têm estradas de ferro em suas RAs viajam em alguns dos 32 trens do metrô.

 

"E se o ônibus quebrar?", a pergunta vive na boca ou na cabeça. É algo tão comum quanto o canto da sabiá. Fico aliviada quando compartilham a localização do transporte no grupo de moradores, porque significa que, naquele dia, ele vai aparecer.

Rodoviária do Plano Piloto, em 2019.

"E se o sistema metroviário e a Rodoviária do Plano Piloto privatizarem?", questiona Cinna Luzia. "Aonde isso vai parar? Porque sabemos que quando a iniciativa privada se apropria de um serviço público, os preços aumentam e a garantia do acesso à população fica mais limitado", sua crítica sai como desabafo também.

 

A partir do meio da rua 6, quem espera o 946 às seis da manhã sabe que vai em pé junto com o calor crescente, a dor de cabeça, o estresse vestido de café da manhã. Durante uma hora e quarenta minutos, o ônibus parte de Vicente Pires até a Rodoviária do Plano Piloto. Nem é uma região administrativa tão distante, mas no DF, todos os caminhos levam ao Plano. Das 16h30 em diante, quem sai da rodoviária  divide o pôr-do-sol com irritação e o cansaço elevado à potenciação de distâncias siderais. Pela janela, vemos a lua assumir o céu brasiliense.

 

A experiência social do presente distrital está diretamente ligada à história da jovem Brasília. 

 

"No início da construção da capital federal, se dizia muito que o habitante daqui é formado por cabeça, tronco e rodas, como se isso fosse um grande negócio. Uma grande bobagem. Eu adoraria, por exemplo, não precisar de carro para vir ao campus Darcy Ribeiro, da Universidade de Brasília", conta o professor do Instituto de Geociências Gustavo Baptista.

 

Geocientista especializado em Sensoriamento Remoto e podcaster, Gustavo desabafa o quanto não gosta de dirigir e que adoraria se locomover para o trabalho de metrô. Ele relembra que cidades históricas e muito mais antigas que Brasília possuem sistemas metroviários e ferroviários articulados. É o caso de Paris, na França, onde a cada 500 metros há uma estação de metrô. 

 

Em sua análise, o professor espelha um sentimento não solitário de que a cidade sexagenária poderia ser um caso de sucesso no cenário de adaptação, onde há espaço para inovar e se distanciar de modelos ultrapassados no planejamento urbano.

 

"A gente precisa repensar esse modelo de cidades adensadas e buscar uma forma mais tranquila de existir no meio urbano. Ainda vivemos uma lógica intensa de deslocamento para lugares centrais, ao invés do aproveitamento da população nas suas localidades".

Propostas para mitigar as emissões de gases do efeito estufa no quadradinho

Subterrâneo da Rodoviária de Brasília, em 2019. Foto de Beatriz Carvalho, alguém que utiliza rotineiramente o transporte metroviário do DF.

O cenário de emissão local é reconhecido pelas pesquisas públicas realizadas e divulgadas pela Secretaria do Meio Ambiente do Distrito Federal. Por isso, a fim de traçar estratégias de redução das emissões de GEEs do transporte, em 2021 foi publicado o Plano de Mitigação. Nele, para reduzir a taxa de liberação de gases, são sugeridos o fomento ao teletrabalho; a “expansão do metrô”; a aplicação do veículo leve sobre trilhos (VLT); e a ampliação do BRT.

 

Quando conversamos sobre a possibilidade de mudanças de comportamento para mitigar as emissões no Distrito Federal, o professor e pesquisador Gustavo Baptista foi otimista ao analisar a brecha de tempo para ação humana. Corremos contra o tempo para evitar cenários desastrosos e inóspitos.

 

“Ainda há tempo? Claro que há. A pandemia foi um momento interessante para a gente entender a capacidade de suporte e resiliência planetária. A gente viu muita coisa voltando a um grau de normalidade climática e de emissão quando foram aplicados os lockdowns tanto na Ásia como na Europa e também no continente americano”, relembra o professor.

 

Durante a quarentena de 2020, as emissões de dióxido de carbono foram reduzidas em 2,4 bilhões de toneladas em 2020, de acordo com o Projeto de Carbono Global, do Future Earth. “Se a gente fizer ações de preservação e criar estratégias para ampliar a quantidade de vegetação, no caso brasileiro; e, para o restante do mundo, principalmente mudar matriz energética de vários países, conseguimos reverter esse processo de emissão. O Brasil já tem uma característica de ser vocacionada à sustentabilidade por ter uma matriz energética mais limpa. O problema nacional é o uso do solo”, complementa Gustavo Baptista.

 

O problema local, entretanto, é a mobilidade. Para isso, a primeira medida de mitigação apontada no Plano dialoga com um dos aprendizados destaques na fala do professor: o trabalho remoto como possível estratégia para diminuir o número de carros particulares nas rodovias do DF.

 

Com a adoção do híbrido pelos órgãos públicos, o plano calcula a diminuição de 22,2 mil toneladas de dióxido de carbono. A estimativa parte do pressuposto de que 20% dos servidores públicos trabalhariam nesse formato, o que reduziria 25 mil veículos em uma frota de 1.402.600 veículos.

 

Por mais que a expansão do sistema metroviário seja uma estratégia, o planejamento público adaptativo e de mitigação para as mudanças climáticas no Distrito Federal não caminha para esta solução. Apesar de descrever no documento como “expansão do metrô”, o Plano de Mitigação menciona apenas a decepcionante proposta de aumentar o uso de painéis fotovoltaicos nas estações do metrô, com o objetivo de reduzir o gasto com eletricidade e aumentar a autoprodução.

 

A medida, entretanto, não reduz significativamente a emissão do transporte no DF. Como a geração energética no DF é, em maioria, renovável, o efeito redutivo da emissão não terá grande impacto. As previstas quatro usinas podem gerar cerca de 5 megawatts de energia limpa, o que aliviaria em torno de 33% o consumo elétrico atual do metrô (equivalente a 15 megawatts).

 

Caminhamos, então, para a terceira sugestão: a aplicação do veículo leve sobre trilhos (VLT) no DF. A prática reduziria a liberação de 55 mil toneladas de dióxido de carbono e diminuiria a circulação de 1.600 ônibus por dia. A proposta do VLT é substituir as linhas de ônibus que passam pelas vias W3 Sul e Norte, no Plano Piloto. As linhas substituídas seriam aquelas em que o embarque acontece nas demais regiões administrativas. Ao final da viagem, os ônibus deixariam os passageiros no Terminal da Asa Sul (TAS) ou da Asa Norte (TAN), onde poderiam fazer integração para o transporte sobre trilhos, com o custo da passagem incluído no bilhete único de integração. 

A arte e o cuidado encontram espaços na rotina cansativa de quem usa transporte público, como é o caso de Letícia Mirelly, autora da foto.

Por fim, a quarta solução sugerida pelo Plano é a ampliação do BRT, o que possibilita o aumento da qualidade do transporte público - pensando na rapidez das viagens, aumento de frequência, atendimento a um grande número de passageiros e redução do transporte individual. A aplicação envolve substituir a frota de ônibus existente pelo sistema BRT. 

 

Essa conversão reduziria 338 mil toneladas de CO2, calcula o Plano. O cenário da estimativa considera a inclusão de 10% de ônibus no sistema e a ampliação posterior para 30% dos ônibus e micro-ônibus restantes. Dentre as propostas indicadas para o setor de mobilidade, é a que apresenta o maior potencial de controle de GEEs.

Mudança de uso da terra e florestas

quarteto de emissões

De cá para lá, aquela garrafa de refrigerante vazia rodava no chão, aspirante a bola de futebol. Era personagem principal do aquecimento físico dos alunos da escolinha de futebol.  Os pedidos de passe precederam a chegada da turma na quadra ao lado da Escola da Vila Basevi, em Sobradinho. Atrás de nós, o sol do fim de tarde estava animado para assistir às partidas.
 
"A vila é a nossa casa". Uma das moradoras conta carinhosamente. "É claro que a gente cuida. Temos orgulho de morar dentro de uma reserva".
 
O Cerrado abriga os moradores da Vila Base há 40 anos, como se escolhesse preferidos. A população ali já viu famílias de antas apreciando a época das mangas, as câmeras de segurança já registraram lobos-guará. Esses são alguns exemplos da riqueza de seres que habitam a Reserva Biológica de Contagem, muito próxima do Parque Nacional de Brasília.
 
Lembrar da Vila - cuja história de ocupação remonta à invasão da área por trabalhadores da empresa de pavimento Basevi - faz ressoar, também, a fala do cerrativista e biólogo Vitor Sena.

Eu sou o Cerrado e o Cerrado sou eu.

Em poucos minutos, a partida começa, energizada, na quadra ao lado da Escola Basevi e da Associação Comunitária local.

O maior desafio ambiental do Distrito Federal é se adaptar às mudanças climáticas - processo urgente que envolve diretamente a organização de cada uma das regiões administrativas, com seus espaços urbanos e rurais. Essa é a análise de André Lima, secretário extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial no Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. Sua percepção vem de quatro anos como secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal (entre início de 2015 e fim de 2018).
 
"Ano após ano o DF bate recordes de temperatura, inclusive noites contínuas com temperaturas acima de 25 graus e dias consecutivos com umidade do ar abaixo de 15%. Também temos os eventos climáticos extremos das chuvas", o secretário especial dimensiona o contexto em que as medidas adaptativas são emergenciais, não apenas preventivas.
 
"O Distrito Federal precisa, por exemplo, adaptar toda a sua parte de drenagem, algo fundamental. Isso implica também em [repensar] todo um ordenamento urbano", avalia André, fazendo referência a uma das principais vulnerabilidades climáticas do DF, as enchentes e enxurradas.
 
Construção de cidades, separação das áreas destinadas à agricultura e agropecuária, seleção de espaços de proteção do Cerrado nativo e criação de unidades de conservação (UC) são exemplos das formas que a sociedade humana utiliza a terra. Estas decisões entram na análise de mudanças do uso do solo, que consideram, também, o desmatamento - a maior fonte de liberação de gases poluentes no Brasil.
 
No Distrito Federal, o segundo maior emissor é o setor de mudanças e transições do uso da terra.

Comparativo entre 37 anos: primeiro slide é referente ao ano de 1985 e o segundo é de 2022.

As duas principais fontes de gases do efeito estufa neste setor são as transformações de floresta para formação campestre e a conversão do Cerrado nativo para pastagem. Os dados são do Inventário de Gases do Efeito Estufa, documento que avalia as emissões do Distrito Federal no período de 2005 a 2018. Somadas, esses usos correspondem a mais de 80% da liberação de GEE do setor e a mais de 90% de emissão na subcategoria de gramíneas. 
 
Ao analisar a perspectiva histórica de uso do solo (1986-2018) apresentada no Inventário, os anos com maior emissão foram, respectivamente: 1991 (mais que 9 milhões de toneladas de CO2); 1986 (aproximadamente 9 mi de toneladas de CO2); 1999 (um pouco mais que 8 mi de toneladas); 1988 (mais que 7 mi de toneladas) e 2013 (6 milhões de toneladas de dióxido de carbono). 
 
Quando o secretário extraordinário responsável por conter o maior problema ambiental do Brasil analisa o cenário climático do Distrito Federal, ele destaca a infraestrutura urbana e ambiental como pontos de atenção.

Uso do solo no Distrito Federal em 2022

Fonte: MapBiomas

Quase metade da cobertura do solo do Distrito Federal é voltado para o setor agropecuário, o total de 46,62%, correspondente a uma área de 268.585 hectares. Esta porcentagem é três vezes maior do que a área urbana, que inclui os espaços de habitação e serviços comerciais, públicos e infraestrutura. De acordo com o monitoramento histórico do MapBiomas (de 1985 até 2022), este último tipo de ocupação representa 12,5% do território do DF, equivalente a 72.296 hectares de área.

Áreas naturais, como formações savânicas e florestais, representam 183.382 hectares (31,83% do território) da região, ao passo que 45.823 hectares (7,96%) são áreas campestres e campos pantanosos ou alagados. 

 

A forma com que o DF se organiza implica, também, na gestão de uma de suas principais vulnerabilidades climáticas: a disponibilidade hídrica.

 

“No caso específico do Distrito Federal, um dos problemas é a manutenção das áreas de recarga de aquífero. [Essa gestão é importante] para que possamos manter os reservatórios e o lençol freático abastecido, para que a gente possa passar a temporada de seca sem precisar fazer nenhum tipo de corte de consumo de água, por exemplo”, explica André Lima. 

 

O secretário especial avalia que “o planejamento do uso de ocupação do solo, o comprimento do Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) e as agências que tratam dos temas de saneamento básico de drenagem e de outorga de água - principalmente a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa) e a Companhia de Água e Esgotos de Brasília (Caesb) -, precisam entender que nem tudo se resolve com obras para captação de água ou para tratamento de água e esgoto”.

 

“É preciso incorporar a infraestrutura verde, que são as Soluções Baseadas na Natureza, o que significa incorporar o Cerrado, as áreas de recarga de aquífero, nascentes e as áreas de proteção dos mananciais. Sobretudo na região do Descoberto, onde existe uma pressão para loteamento e para urbanização de áreas rurais fundamentais para manutenção da capacidade de produção hídrica e de suporte”, esclarece.


O Distrito Federal - um ecossistema interligado a tantos outros - é fortemente influenciado pelo que acontece no estado de Goiás, assim como pelos outros estados de Cerrado e do restante do país. Por exemplo: uma das consequências do desmatamento no bioma é a alteração no microclima local e regional. Esses contextos devem ser considerados também no planejamento adaptativo, o que abre possibilidades de articulação com outros estados e municípios.
 
O Cerrado está mais seco e mais quente. A temperatura média do bioma já aumentou quase 1°C grau (precisos 0,9°C) e sua umidade reduziu 10%. A principal causa é a passagem da vegetação nativa para pastagens e agricultura, realizada por ação humana. Esses são dados do estudo “Desmatamento do Cerrado ameaça clima regional e disponibilidade de água para agricultura e ecossistemas” (tradução do inglês), no qual a primeira autora é a pesquisadora Ariane Rodrigues, vinculada ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).

"O Distrito Federal é um quadradinho no meio de Goiás e recebe influência do que acontece ao redor. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), vimos o desmatamento aumentar também em áreas de urbanização antiga no estado vizinho, onde, antes, acontecia o processo de expansão agrícola para áreas de pastagens. Agora, o desmatamento voltou a crescer. São fatores locais, como a pesquisa mostra, que aumentam a vulnerabilidade da região. Isso interfere no DF, principalmente na temperatura local [do Cerrado]. Na fronteira com a Caatinga, por exemplo, a temperatura atinge mudança de 5°C na temperatura", examina a cientista ambiental Ariane Rodrigues.
 
Em sua atual pesquisa de doutorado, Ariane analisa as transições de uso de solo de cada estado cerratense, no período entre 1986 e 2021, com base no MapBiomas. Ao olhar para o Distrito Federal, ela percebe um processo bem dinâmico do uso do solo, em que “tudo acontece ao mesmo tempo”.
 
Alguns dos pontos destaques é que a conversão direta da vegetação para agricultura não é tão expressiva no território. O processo da agricultura expandindo para as pastagens já abertas é mais consolidado, um fenômeno normal em áreas mais antigas de uso do solo, como é o caso do DF. Entretanto, fica um alerta: Ariana Rodrigues observa a volta intensa e frequente do desmatamento local, acompanhado do abandono de áreas com pastagem e,
em outros pontos, a expansão da agricultura sobre esses pastos deixados.
 

Esta última forma de transformação do uso do solo é algo a ser incentivado, explica Ariane. A expansão das novas áreas de produção de grãos sobre as pastagens já abertas e subutilizadas é um caminho para aumentar a agricultura sem novos desmatamentos, continua a especialista. Dessas transições, a mais alarmante é a conversão da vegetação nativa para pastagens.

 

O Plano de Mitigação propõe reduzir a conversão de áreas florestadas em pastagens em 26% até o ano de 2025. Para 2030, a meta é diminuir em 50% esta forma de mudança de uso do solo, tendo como parâmetro a média anual histórica entre 2005 e 2018. Como resultado, para 2025, 957.367 toneladas de dióxido de carbono deixariam de ser emitidas; e, para 2030, seriam menos 1.849.100 milhão de toneladas de gases na atmosfera.

Paisagem do Cerrado na área de proteção ambiental de Chapadinha, no Lago Oeste.

Emissão por incêndios florestais

Quando o fogo vem, não é só mais dióxido de carbono, óxido nitroso e metano liberados na atmosfera da Terra. Vai para além do debate de emissões e da degradação ambiental.
 
Quando o fogo vem, traz a perda de anos de trabalho de agrofloresteiros no Assentamento Canaã, em Brazlândia. É o sufoco no coração que Maria Quitéria, mãe solo, sentiu ao perder todas as suas agroflorestas para um incêndio criminoso causado por grilagem nos arredores.
 
A fumaça faz prender a respiração por diversos motivos. É desenhada pelo bolo na garganta, amálgama de emoções. Faz lembrar o simbólico fogo criminoso que estalou no dia do Cerrado, em 2023, deixando para trás mangueiras derretidas, troncos mimetizando carvão e vidas carbonizadas.

No dia da visita à chácara de Flávio Cerratense, no Assentamento Canaã, o agricultor estava recebendo juventudes do MST do Brasil inteiro. Na foto, jovens participam da oficina de agrofloresta, em um dos canteiros que não foi afetado pelo fogo.

Decorrentes do fogo, 2,8 milhões de toneladas de carbono equivalente (tCO2e) foram emitidas entre 2005 e 2019, de acordo com as estimativas do Plano de Mitigação distrital, divulgado em 2021. A emissão média de metano foi de 14,56 mil tCO2e e 0,97 mil tCO2e de óxido nitroso; a média histórica geral foi de 15,5 mil toneladas. No mesmo período, 19.602,8 hectares do território do DF foram atingidos pelas queimadas.


Para 2024, o Plano sugere a redução de 25% das emissões por incêndios florestais, e 50%para 2030. Ao total, seriam evitados a liberação de cerca de 3,9 mil e 7,8 mil toneladas de CO2e, respectivamente. Esta ambição está presente, de forma indireta, no compromisso posto pela Contribuição Distritalmente Determinada do Distrito Federal (CDD-DF), documento que também considera o plano de redução de gases voltado às transições do uso do solo e desmatamento.

Na Chapada Imperial, o ano de 2022 foi marcado por um intenso incêndio florestal que demorou semanas para ser contido. A família Imperial perdeu alguns cavalos para o fogo, carcaças de jabutis foram encontradas carbonizadas. O fogo foi tão alto e intenso que atingiu as palmeiras do buriti e deixou o solo em cinzas. Estas fotos foram tiradas um ano depois do incêndio.

O fogo, distúrbio natural do Cerrado diante das condições adequadas e na temporada certa, é um agente ecossistêmico para o bioma. O fogo oriundo de incêndios florestais não se enquadra como ferramenta de manutenção da vida cerratense.
 
Este é quem transformou, em 2022, parte do solo da Reserva Particular do Patrimônio Natural Chapada Imperial em cinzas escuras. Fogo, alto e descontrolado, quem alcançou as palmeiras dos buritis, deixou para trás carcaças de jabutis e corpos incinerados de cobras e sapos.
 
Manter o Cerrado de pé é a principal política pública para remoção de gases do efeito estufa dentro do setor de mudanças de uso do solo. É estratégia essencial para mitigação e adaptação às mudanças climáticas - uma forma de criar resiliência, inclusive, nas áreas urbanas, por meio da implementação de corredores ecológicos e parques urbanos.
 
A terra é um espaço múltiplo, contraditório, disputado, conflituoso. É um sonho, uma demonstração de coragem, a busca por um futuro. A terra é poder, é dinheiro, é ambiente de crimes - como a grilagem incendiária. A terra é alma. A terra é história. A terra, simplesmente, vive, respira e conta histórias.
 
Terra é um gato preto que pula janelas altas, recebe bem as visitas, respeita o próprio tempo, reconhece perigos e inclina a cabeça em pedido de afago.

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A corajosa e amável Gaia.

Resíduos e efluentes

quarteto de emissões

Existe um paraíso de murundus em Samambaia, abrigado pelo Parque Boca da Mata. Um dos personagens principais da minha jornada de campo para este projeto, esse lindo conjunto de morrinhos são característicos da paisagem savânica. Uma das fitofisionomias de área alagada no Cerrado, os murundus estão intimamente próximos aos lençóis freáticos rasos, apresentam vegetação arbustiva nos montinhos de um metro e meio e são ligados estruturalmente a cupins e seus cupinzeiros.

 

Infelizmente, essas pequenas montanhas convivem com o descarte incorreto de lixo - apesar dos esforços de trilhas para coleta organizados pelo Coletivo Boca da Mata. Uma das formas de manejo do lixo pelos invasores humanos do parque é organizá-lo em pilhas e queimar. Com essa receita, surgem os frequentes incêndios florestais - caracterizando o Boca da Mata como uma das áreas mais vulneráveis ao fogo no Distrito Federal.

 

A lagoinha, perigosamente perto do Setor de Oficinas Sul, também enfrenta um dilema de anos: o descarte de esgoto e de combustíveis em suas águas. Quando nos aproximamos da mata de galeria, a bióloga e participante do coletivo Kallyne dos Santos Oliveira aconselha: preste atenção ao cheiro. O cheiro doce da terra - dançando conosco desde que entramos no parque - se distancia a cada passo que nos aproxima da lagoinha.

 

Preste atenção ao cheiro.

Campo de murundus.

A terceira maior fonte de emissão no quadradinho é o setor de resíduos e efluentes. Ao longo do período analisado pelo Inventário (2005 a 2018), a liberação de GEEs - dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O) – na categoria resíduos apresentou tendência de aumento. Desses, o principal gás é o metano, em mais de 95% das emissões, ao passo que o CO2 teve emissão insignificante.

 

Nos 13 anos investigados, foram emitidos 16.905,054 mil toneladas de carbono equivalente (mil ton CO2eq) no Distrito Federal. Dentre eles, 2017 foi líder de emissão, com a marca de 1.346,539 mil toneladas. Os pesquisadores do documento interpretam o leve declínio em 2018 como consequência da inauguração do Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia, o que possibilitou a transferência de cerca de 30% dos resíduos para o novo aterro sanitário.

As categorias consideradas no setor de resíduos e efluentes são: incineração de resíduos; tratamento biológico de resíduos sólidos; tratamento de efluentes industriais; tratamento de efluentes domésticos; e tratamento de resíduos sólidos. Até 2016, havia apenas a “disposição de resíduos em sítios não manejados”, realizada no Aterro Controlado do Jóquei desde 2005 - o chamado Lixão da Estrutural. A partir de 2017, a subcategoria “disposição de resíduos em sítios manejados” - marcado pelo início da operação do aterro de Samambaia -  é adicionada às estimativas.

 

Os resultados públicos indicam: as emissões de ambientes não manejados - como lixões - representaram mais de 72% das liberações de gases anuais do setor. A categoria de efluentes domésticos contribuiu com emissões superiores a 23%.

 

A forma com que o Distrito Federal lida com os resíduos sólidos é algo para se atentar. Entre 2005 e 2018, a emissão cresceu em 24,68% e representou mais de 70% das liberações de GEE do setor como um todo. O descarte desta categoria, juntamente com efluentes domésticos, representaram 98% das emissões de tratamento de resíduos durante todo o período.

 

Ao realizar o comparativo de dados com a plataforma SEEG no mesmo recorte de tempo, em 2005, o manejo de resíduos e efluentes liberou 854.838 toneladas de gases do efeito estufa. Para 2018, foram 1,5 milhões de toneladas (1.566.482).

Disposto a conter parte da liberação de GEEs na atmosfera pelo setor de resíduos e efluentes, o Plano de Mitigação aponta o caminho de reutilização do combustível derivado de resíduos (CDR) como fonte de energia aos fornos de cimento, às usinas energéticas e à indústria de ferro-níquel. O reaproveitamento de resíduos como combustível na produção local reduziria 218.317 tCO2 por ano, para 2030.

 

O Plano utiliza informações entregues pelo Serviço de Limpeza Urbano do Distrito Federal. Nelas, são consideradas o planejamento da rota tecnológica da instituição nos anos 2025 e 2030. A partir disso, algumas soluções apresentadas para o cenário de 2030 são:

  • Incrementar a compostagem, com redução da emissão líquida em 30.797 tCO2e por ano.

  • Uso de biodigestores, com sequestro líquido de 469.920 tCO2e por ano.

  • Reciclagem por cooperativas, para diminuição líquida de 79.411 tCO2e por ano.

  • Geração de energia elétrica a partir da queima do metano conteria a emissão de 253.988 mil t CO2e ao ano.

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Atividade no Lixão da Estrutural. Imagem feita por Carolina Pádua, este ano.

No Assentamento de Reforma Agrária 15 de agosto, a produtora de hortaliças e pedagoga Laura de Jesus costuma se irritar com algumas situações. Enquanto tomamos um delicioso suco de acerolas retiradas do quintal, ela conta que uma delas é a saga do Papa-Lixo naquela área rural de São Sebastião. Não apenas duas e nem três vezes, já presenciou moradores passarem próximos das caçambas e jogarem o lixo no chão.

 

"O que custa encostar o carro e jogar lá dentro? Querendo ou não, quando chover, esse lixo pode ir para o córrego aqui próximo", questiona retoricamente. "Tudo isso tem relação com a proteção do meio ambiente e as consequências para o clima quente".

 

"Não sabe por que o clima está desse jeito?" - Laura relembra as perguntas que aparecem em conversas cotidianas. "Sabe, sim. Joga lixo no chão, ele corre para a mata de galeria e para as águas, polui nascente, afeta as árvores… Tudo está interligado. Estão aí as consequências". - Continua, as mãos entrelaçadas sobre a mesa da varanda silenciosamente concordando.

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O barulho de uma grande jaca caindo no chão não interrompeu a conversa. A fruta parecia dizer que certamente esses moradores específicos acostumados a não jogar lixo dentro das caçambas não convivem com, ao menos, uma das crianças ou adolescentes atendidos pela Casa da Natureza.

 

Do outro lado do Distrito Federal, Ivanete Silva dos Santos, coordenadora socioambiental da Casa da Natureza, fala com orgulho: nossos jovens constrangem os adultos que agem sem consciência ambiental. Conhecer a sede da Casa, no Sol Nascente, é mergulhar na certeza de que a semente do cuidado com o meio ambiente foi plantada em terra fértil. Terra vermelha corajosa.

 

Ivanete, também especialista em reabilitação ambiental sustentável arquitetônica e paisagística, me conta histórias bonitas sobre o ativismo praticado pelos jovens da Casa, organização criada em 2006.

 

"As crianças absorvem o que é bom. Elas entendem que ao separar o lixo, você evita que ele vá para os cursos d’água, como o Melchior ou a Lagoinha. Elas são a nossa força".

 

E continua.

 

"Nós vamos para a rua plantar árvores. Em cada muda plantada, as crianças entendem o porquê daquela ação. É uma semente que todos estamos plantando no coração delas. Não é só aquela planta física, é também o amor pela Natureza. Quando menos esperamos, a criança ou o adolescente te dão uma lição e demonstram que absorveram os aprendizados". Ao nosso redor, os sons dos pássaros reverberam, parecem concordar.

 

Ressoa o poder de encantamento da Natureza. 

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Localizada no Sol Nascente, a Casa da Natureza nasceu em 2009.

Quando cheguei na Casa da Natureza, em uma terça-feira do meio de setembro, dois adolescentes aplicavam um mecanismo alternativo para o cultivo de mudas de alface. Com garrafas plásticas, fizeram vasos adaptados para suprir a necessidade de regar a terra todos os dias. Antes de irem embora, guardam o experimento no berçário para a hortinha. Ivanete me conta, depois que eles dão tchau e vão embora, que ninguém da Casa passou aquilo para eles. Com autonomia, eles trouxeram a ideia, fazendo a coordenadora aprender junto também.

A juventude na Casa sabe da importância do Rio Melchior, quem enfrenta um processo constante de violência, por conta da gestão de resíduos e efluentes no Distrito Federal.
 
Existem 15 Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) no quadradinho, organizadas em quatro Bacias de Esgotamento Sanitário, de acordo com a Adasa. Há 3 estações na Bacia do Lago Paranoá (ETE Brasília Sul; Brasília Norte; Riacho Fundo); três na Bacia do Rio Descoberto/Melchior (ETE Melchior; Samambaia; Brazlândia); quatro na Bacia do Rio Ponte Alta/Alagado (ETE Alagado; Santa Maria; Recanto das Emas; Gama); e mais quatro na Bacia do Rio São Bartolomeu (ETE São Sebastião; Paranoá; Vale do Amanhecer; Planaltina; Sobradinho).
 
Em 2019, o chorume do Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia, vazou e atingiu o Melchior - habitante na divisa entre Ceilândia e Samambaia. O Serviço de Limpeza Urbana (SLU) local relatou, na época, que o chorume vazou pelo menos duas vezes. O conteúdo orgânico transbordou, caiu na rede de esgoto e passou para a rede de drenagem - sessão que transporta a água da chuva contaminada para o curso d’água.

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Rio Melchior, habitante de Ceilândia e Samambaia. Imagem do ativista ambiental Alzirenio Carvalho.

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Em 2019, a comunidade flagrou a intensa contaminação do Melchior. A imagem mostra a quantidade de espuma, decorrente da liberação de efluentes tratados da Caesb. À época, a luta coletiva conquistou a responsabilização da empresa e o tratamento da água, a fim de acabar com a espuma. Imagem de Alzirenio Carvalho

É o Melchior, quem, antes de desaguar no Descoberto, constrói memórias e cotidiano com a população do Distrito Federal, por meio do abastecimento da agricultura familiar e das áreas de banho - não mais frequente no hoje. 
 
Apesar de passar por tratamento, o Melchior recebe 40% dos esgotos do Distrito Federal, além de efluentes não tratados resultantes de processos industriais e agrícolas, eventuais vazamentos de chorume e contaminação por cobre e outros poluentes. A palavra “morte” costuma ser associada ao curso d’água em debates entre pesquisadores, ativistas ambientais e comissões públicas. Morte do rio e dos outros seres que interagem com ele.
 
A coordenadora Ivanete compartilha uma memória do ativismo dos jovens:

"Em 2019, quando houve um rompimento da tubulação no Rio Melchior e as instituições responsáveis - a Caesb, o SLU e o Governo do Distrito Federal - não escutaram a gente, a Casa da Natureza fez uma Ciranda Ambiental. Fomos próximos ao Melchior, montamos uma tenda e discutimos a proteção do rio. Saímos da Praça da Fé, no P. Sul, e caminhamos. Cada criança sabia o significado das faixas que carregavam. O que estava escrito era o sentimento pessoal diante do estado do rio, incluindo mensagens como “preserve o rio”, “Melchior é importante” e “não vamos matar o Melchior”. Na Ciranda, as crianças e os adolescentes falavam. Não eram frases ensaiadas, era o momento de expressão deles, o que eles absorveram com as ações capazes de realizar".
 
Criado com forte inspiração na Casa da Natureza, o Instituto Filhas da Terra, ativo em Ceilândia, também participa ativamente na defesa pela proteção do Melchior, a partir de pressão política, presença em audiências públicas, com treinamentos, palestras e eventos.

Os pássaros cantam, em concordância. Acrescentam detalhes perdidos na memória de Ivanete e, em outra linguagem, resgatam outras histórias passadas do ativismo jovem no Sol Nascente.
 
Quase sai pelo bico deles o eco da fala de Ivanete Silva:

"É assim que eles nutrem o amor pela causa ambiental. Esse é o tipo de amor que se expande para o amor com o ser humano também". 

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Em novembro, a Casa realizou mais uma ação de plantar mudas de árvores pelo Sol Nascente e Pôr do Sol. Imagem do acervo de Ivanete Silva (de camiseta preta).

Processos industriais

quarteto de emissões

Em atividade de campo na disciplina Comunicação Comunitária, conheci a Ana Júlia. Moradora da Fercal, ela me contou um pouquinho sobre como é viver onde estão localizados fósseis de cianobactérias que habitaram o local há aproximadamente 1 bilhão e 50 milhões de anos, quando tudo aqui era chão oceânico. O nome da região administrativa faz referência à empresa Fertilizantes Calcários (Fercal), povoada, em 1956, por trabalhadores. 
 
É uma história parecida com a da Vila Basevi, também ocupada por operários da indústria de pavimento homônima à vila em Sobradinho, instalada nas proximidades em 1970.
 
Minhas memórias da Fercal e da Vila Basevi esbarram na arte de uma forma ou de outra. Na primeira, em uma das visitas fruto de parceria entre a UnB e a comunidade local, a fotografia gravou luzes e retratos. Mais de um ano depois, no espaço habitacional dentro da Reserva Biológica de Contagem, aceno para crianças sorridentes e elétricas em uma tarde de terça-feira. Pela janela do ônibus escolar, elas demonstram o quão divertido foi o passeio no Teatro de Sobradinho.
 
A arte sempre dá um jeito, como a Terra e seu povo.

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Entrada para a Vila Basevi, localizada dentro da Reserva Biológica de Contagem, em Sobradinho.

Dados do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF- CODEPLAN) apresentam que, em 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) do Distrito Federal foi R$265,847 bilhões, ranqueando a capital na oitava posição no cenário nacional, compondo 3,5% do PIB brasileiro. Comparado a 2019 e em razão da pandemia, o valor total reduziu dois pontos percentuais (3,7%).
 
No ano em destaque, o setor de serviços, principal atividade econômica distrital, apresentou a movimentação bruta de R$227,815 bilhões, equivalente a 94,8% do PIB local. O setor agropecuário apresenta a menor participação na estrutura produtiva local - R$ 1,6 bilhão.
 
Ponto importante para a discussão neste tópico, a indústria representa 4,6% do PIB local e rendeu R$10,9 bilhões. Este setor emprega 100.330 trabalhadores do quadradinho, de acordo com o Portal da Indústria
 
O Inventário de Gases do Efeito Estufa do Distrito Federal, ao fazer os cálculos de emissão relativos ao período entre 2005 e 2018, considerou apenas os processos industriais e uso de produtos. Os subsetores são a indústria mineral; o uso de gases fluorados em substituição às substâncias depletoras da camada de ozônio (SDOs); e o uso e manufatura de outros produtos. 
 
Foram 15.711,81 toneladas de dióxido de carbono (mil ton CO2) emitidos na produção de cimento nesse período - mais de 84% das emissões do setor. Esse subsetor é responsável, em média, por 89% das emissões industriais e de produtos. Em segundo lugar, está a categoria “outras aplicações”, voltada para gases provenientes do uso de ar condicionado, aerossóis e refrigeração. 
 
Os pesquisadores explicam, no documento, que o setor libera os dois seguintes gases, além do CO2 (dióxido de carbono): HFCs (hidrofluorcarbonetos) e SF6 (hexafluoreto de enxofre). Não houve emissões dos gases CH4 (metano), PFCs (perfluorocarbonetos) e N2O (óxido nitroso). 

SOBRE

O quanto estamos vulneráveis no Distrito Federal é uma reportagem digital extensa sobre a posição da capital no debate climático. Em três capítulos, conversamos a respeito das emissões no DF, os principais riscos e vulnerabilidades climáticas e a atuação política em busca de justiça climática.

O projeto se enquadra no Jornalismo Ambiental e Literário. A apuração partiu de dados públicos, atividades de campo pelo Distrito Federal e entrevistas presenciais e online, ao longo de 2023.

Este é o trabalho de Conclusão de Curso de Maria Alice em Jornalismo, na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, sob orientação da professora, doutora e jornalista Marta Salomon.

Maria Alice é membra do Núcleo de Comunicação e Engajamento na organização da sociedade civil A Vida no Cerrado.

Todos os gráficos foram produzidos pela autora, assim como as imagens sem crédito destacado.

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