SOBRE
O quanto estamos vulneráveis no Distrito Federal é uma reportagem digital extensa sobre a posição do Distrito Federal no debate climático. Em três capítulos, conversamos a respeito das emissões no DF, os principais riscos e vulnerabilidades climáticas e a atuação política em busca de justiça climática.
Utilizamos técnicas do Jornalismo Ambiental, de Dados e Literário para construir o projeto. A apuração partiu de dados públicos, atividades de campo e entrevistas online.
Este é o trabalho de Conclusão de Curso de Maria Alice dos Santos em Jornalismo, na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, sob orientação da professora, doutora e jornalista Marta Salomon.
Maria Alice é membra do Núcleo de Comunicação e Engajamento na organização da sociedade civil A Vida no Cerrado.
reportagem
Em seus barulhos tectônicos,
Terra Ronca é Cerrado gritando por vida
Cercado pela monocultura predatória e suas drásticas consequências ambientais, a região do Terra Ronca — parte remanescente de Cerrado goiano nativo —, já está vulnerável ambiental e climaticamente
Maria Alice, A Vida no Cerrado. 19 de julho de 2024.
Entre a Serra Geral baiana e o goiano Morro do Moleque, o povoado de São João é lar de cavernas apaixonantes, veredas emolduradas por buritis centenários, araras-azuis e vermelhas e gente que ama o Cerrado como um querido e poderoso avô. Localizado no município de São Domingos, em Goiás, o povoado lida com desafios diários ambientais e climáticos: os incêndios florestais aceleram o coração apreensivo; o cerco do agronegócio acima da Serra ameaça a qualidade e garantia da água, tanto no lençol freático quanto nos rios e córregos.
O nível dos córregos e rios já diminuiu drasticamente e, quando a seca vem, a falta d’água é uma preocupação sazonal. A segurança hídrica atravessa duas práticas da agricultura predatória: os super poços artesianos e o uso intenso de agrotóxicos. O desmatamento decorrente da abertura de novas áreas para produção de commodities, além de intensificar a seca e a produção natural de água na região, vulnerabiliza o solo das áreas altas e amplia o risco de desmoronamentos — algo que já aconteceu no povoado.
No vale da Serra, no chão arenoso e laranjado de São João Evangelista, os moradores querem fazer do cuidado pelo Cerrado uma prática cultural e também de subsistência. Lar de cavernas, frutos das ações mais criativas da Natureza e sua sapiência, o turismo é fonte de renda de significativa parte da população local, assim como o extrativismo e a pecuária familiar. São João, com suas paisagens verdes — remanescentes da vegetação nativa do Cerrado —, biodiversidade pulsante, cachoeiras de tirar o fôlego, águas límpidas e um dos maiores complexos de cavernas da América Latina, tem atrativos para estruturar um forte ponto de ecoturismo.
O turismo se mostra um dos caminhos e sementes de construção de um futuro intrinsecamente conectado com o cuidado pelo bioma. Uma das esperanças e de que, assim — quem sabe? — a conservação do Cerrado se transforme em prática cultural e educacional em São Domingos e arredores
Esse é um dos sonhos da comunidade, expresso nas reuniões de maio para construção da Carta de Direitos Climáticos da Terra Ronca. Construída pensando em esperanças, desafios, sementes, mudanças e muita ação coletiva, a Carta é uma iniciativa da organização internacional Climate Reality, realizada no território em parceria com A Vida no Cerrado.
Estimada para lançamento em julho, o documento é uma fonte de dados e reivindicações com potencial para subsidiar políticas públicas e ações municipais. Dessa forma, é possível fomentar a sustentabilidade da comunidade do povoado de São João e de São Domingos, especialmente porque a Carta é pensada a partir da relação entre os moradores locais com o Cerrado, a Reserva Extrativista Recanto das Araras de Terra Ronca e o Parque Estadual Terra Ronca.
Apenas uma semana em São João e uma reportagem especial não são o suficiente para contar esta história. Uma história de amor, ancestralidade, respeito, conflitos e bravura. De qualquer modo, tentaremos.
*Todas as imagens sem créditos são de nossa autoria.
São Domingos e Terra Ronca enfrentam poderosos titãs
Visitante, quem chega logo descobre que o primeiro dos titãs preda água de córrego, lagoa, riacho e lençol freático
Terra Ronca, água canta
Ao nordeste de Goiás, vizinho da baiana Correntina, o município de São Domingos é abraçado pelas águas do Cerrado, especialmente envolto por seu rio homônimo, espelho do céu cheio de estrelas, do estalar do sol e do aconchego das nuvens. Talvez o município seja do rio, ao invés do contrário.
Lar de pouco menos de 10 mil pessoas espalhadas por aproximados 3 milhões de quilômetros quadrados, São Domingos tem como cartão postal monumentais cavernas, cachoeiras e veredas de encher os olhos. Envolto por serras e escarpas, seu céu, durante o dia, adiciona um tom novo às cartelas de cores azuláceas. À noite, uma moradora da cidade como eu encontra estrelas estranhas à selva de pedras. Privilégio, estrelas cadentes se exibem como quem diz, diante do meu espanto: “bem-vinda, somos sempre belas assim”.
O contraste da paisagem é drástico, como aquelas imagens dramáticas de desmatamento. Ao nos distanciarmos do monocultor Distrito de Rosário — parte do oeste de Correntina (BA) — e entrarmos nas baixas terras goianas de São Domingos, árvores de variados tamanhos e mato rasteiro nos encobrem, vestindo morros, emoldurando as estradas e protegendo os múltiplos veios d’água da região. Estamos em território cerratense ainda preservado, parte dos 48% remanescentes de vegetação nativa do bioma.
Acima da Serra, a monocultura radicaliza a paisagem do Distrito de Rosário, um mural de soja, algodão, milho e café. Para dar conta de uma das áreas mais produtivas de Correntina, silos enormes se estendem como morrinhos e, ao redor da estrada, empresas de agrotóxicos, fertilizantes, maquinários e suporte hídrico caminham paralelamente às extensões de commodities. É o desenho de um crescimento meteórico nos últimos trinta anos: a produção de soja no Distrito cresceu mais de 10 vezes nos últimos trinta anos, passando de 30 mil hectares, em 1980, para 371 mil hectares, em 2019, estima a Associação dos Produtores de Soja no Brasil (Aprosoja).
No sopé da Serra Geral, as águas do Parque Estadual do Terra Ronca testemunham o hiper-desenvolvimento do agronegócio baiano. Entre 1985 e 2022, as águas superficiais do Parque Estadual de Terra Ronca — rios, córregos, lagos e riachos — reduziram drasticamente. Saíram da máxima de 7 hectares de água, em 1986, para menos de um hectare, em 2022. Num extremo, chegaram ao mínimo de zero hectare em 2021, segundo os dados do MapBiomas Água.
Uso do solo em São Domingos (GO), Correntina (BA) e no Parque Estadual de Terra Ronca (cores mais iluminadas). Fonte: MapBiomas.
Pelos dados do MapBiomas, a maior parte do uso do território de São Domingos é dedicada para a agropecuária (56,63%) — em maioria para pastagens e espaços onde agricultura e pecuária coexistem —; em segundo lugar estão vegetações florestais (cerradões e matas de galeria e ciliar), em 31,32% do município; e vegetações não florestais (como as áreas campestres do Cerrado, por exemplo) ocupam 11,44% do território. Quando analisamos os usos do solo da vizinha Correntina, 39,29% do município é direcionado para agropecuária, concentrando-se no lado oeste do território, assim como em São Domingos. 48,19% e 12,11% da cidade baiana é formação florestal e não florestal, respectivamente.
É por isso que, nas reuniões para construção da Carta de Direitos Climáticos de Terra Ronca, a expressão “ser estrangulado pela agropecuária intensiva” apareceu algumas vezes. É um cerco que carrega consigo diversos e predatórios impactos.
“Em Rosário, as áreas de irrigação intensiva consomem grandes volumes de água subterrânea e superficial, que somado ao impacto dos poços artesianos, pode acarretar uma redução da recarga dos aquíferos, afetando também as nascentes de rios que descem a Serra. A extração de água em níveis superiores à capacidade de recarga natural causa o rebaixamento do lençol freático, e a redução dos níveis de água subterrânea e superficial afeta diretamente a disponibilidade hídrica abaixo da Serra”, explica o engenheiro florestal Joaquim Raposo, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
Outra área de conservação, na Reserva Extrativista (RESEX) de Recanto das Araras de Terra Ronca, a disponibilidade de águas superficiais varia entre pouco mais e pouco menos que um hectare, chegando a zero em 2021 e mantendo-se ali até 2022. É nessa RESEX de 11.964 de hectares que o povoado São João está localizado, onde gerações de famílias coexistem com o Cerrado nativo e as cavernas. Gradativamente, nos últimos anos, também convivem com a preocupante seca e a redução do fluxo dos riachos, córregos e das chuvas.
Para os moradores, existe uma relação direta entre o intenso uso do solo para a monocultura — incluindo a predação da água — com a intensificação da seca localmente, somado aos fatores de agravamento climático em todo o país. O pesquisador Joaquim contextualiza que “o uso descontrolado dos recursos naturais tende a agravar os efeitos de seca”, entretanto, alerta que, para afirmar com segurança os impactos e consequências do monocultivo baiano no povoado de São João, “são necessários estudos diretos e de campo para poder avaliar as relações entre redução de vegetação nativa, aumento da agropecuária e redução de disponibilidade hídrica”.
É por isso que o incentivo à pesquisa na região de Terra Ronca é uma das demandas no território. Ao longo das reuniões para construção da Carta de Direitos Climáticos, os moradores destacam que, junto com a presença de pesquisadores, é necessário que os resultados das investigações voltem para a população. Os dominicanos querem saber sobre a qualidade da água que tomam, águam suas plantações e hidratam seus animais. Querem saber da saúde das águas e do ar, se no fogo controlado podem ou não confiar, se a expectativa para a seca é o constante piorar.
E nessa água tem veneno?
“A água que tomamos é de qualidade?”, questiona Maria da Silva, as palavras vestidas com a seriedade que o tema requer. Professora aposentada, tem o olhar de quem conhece e ensina sobre o Cerrado.
“Essa agricultura que temos ao nosso redor, que está nos prejudicando muito, já traz o risco de ficarmos sem água, por conta dos poços artesianos. O alimento não é para matar a fome do brasileiro, é, muitas vezes, para alimentar o mercado no exterior. Nós ficamos à mercê, com alimento contaminado de agrotóxico e com a água contaminada também. Será que nos alimentamos de produtos de qualidade?”, reforça a questão.
O receio de contaminação das águas não é uma preocupação isolada. Ao contrário: ressoa como o vento forte do povoado, um coro de temor pelo uso de agrotóxicos nas lavouras acima da Serra Geral. Infelizmente, a apreensão do povoado de São João se repete por todo o país e, em especial, nos demais municípios do Cerrado.
O Brasil é um dos maiores consumidores de veneno no mundo. Apenas em 2021, o relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) demonstra que o país utilizou mais agrotóxicos nas lavouras do que a China e os Estados Unidos juntos. Foram aplicadas 719,5 mil toneladas de venenos, comparado a 244 mil toneladas utilizadas pela China e 457 mil toneladas nos Estados Unidos. Isso significa 3,31 quilos de agrotóxicos por brasileiro e 10,9 quilos de veneno aplicados por hectare de lavoura no país.
Em terras cerratenses, a situação é grave. Apenas em 2018, 73,5% do agrotóxico do país foi utilizado no Cerrado, o equivalente a mais de 600 milhões de litros de venenos. É o que mostra o artigo “Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos”, publicado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). As consequências desse despejo podem ser percebidas, inclusive, na qualidade do ar que respiramos.
O artigo denuncia o ecocídio no bioma, decorrente especialmente da atividade predatória do agronegócio. São mais de 110 milhões de hectares ocupados pela prática econômica, preparados para produzir 75% das commodities soja-cana-milho-algodão do Brasil e pastagem direcionada à carne bovina.
Os autores denunciam o desmatamento da vegetação nativa e o “consumo de 91,8% das águas superficiais e subterrâneas usadas na irrigação por pivôs centrais, resultando na migração de nascentes, na interrupção dos fluxos dos rios e na redução dos volumes dos aquíferos, como se aprofunda na análise dos conflitos em curso no oeste da Bahia e na bacia dos rios Formoso e Javaés/TO”. Vale relembrar que essas práticas intensivas ameaçam os 48% do Cerrado nativo remanescente, em que boa parte dessa vegetação nativa está localizada no nordeste e norte do estado de Goiás. Incluindo no município de São Domingos.
Como consequência do predatório agronegócio, as taxas de intoxicação exógena e câncer infanto-juvenil no Cerrado são maiores que as médias nacionais, complementam os autores do artigo, apontando para o impacto social dos venenos de lavouras.
A intoxicação por agrotóxicos vai além do contato “direto” com o veneno. Ela pode acontecer, simplesmente, pelo ar. É o que mostra pesquisa desenvolvida por pesquisadores do Instituto Federal Goiano, publicada em 2023. Nela, os pesquisadores percebem que a morte de líquens é influenciada pela exposição ao glifosato — um dos pesticidas utilizados para conter ‘ervas daninhas’. Essa observação demonstra o alcance do veneno até em áreas que deveriam estar protegidas.
As amostras analisadas foram retiradas de Áreas de Preservação Permanente no estado de Goiás, algumas localizadas em propriedades privadas com monocultura, outras em Unidades de Conservação de Proteção Integral (UC) — espaço onde, teoricamente, os líquens não deveriam ter contato algum com o agrotóxico. Entretanto, apesar da restrição de atividades agropecuárias, os pesquisadores encontraram metais pesados do glifosato nas amostras da unidade de conservação Parque Nacional das Emas. A contaminação pode ter acontecido pelas águas subterrâneas e correntes de ar após a pulverização aérea — esse é o chamado efeito deriva, contextualizam os pesquisadores.
Ao trazermos esse contexto para a realidade do município de São Domingos e do povoado de São João, os dados demonstram que os territórios já estão vulneráveis apenas por fazer fronteira com o Distrito de Rosário, região extremamente produtiva em Correntina, parte do oeste baiano. O impacto do agrotóxico utilizado na Serra — aplicado, inclusive, também por pulverização aérea, método ainda mais contaminante — é denunciado pela comunidade local. A pauta faz parte da conversa de café da manhã, aumenta o calor do café, queima mais forte a garganta e o peito.
“A presença de lavouras próximas de povoados é sempre um problema. Primeiro porque são usados vários produtos e eles não são usados de forma individual, são usados em mistura. No caso da soja, há o uso de herbicida e também relatos de uso de inseticida e fungicida”, começa Daniela de Melo Silva, biomédica e doutora em genética, especialista em estudos de impacto do agrotóxicos na saúde humana e de outros animais. O impacto negativo na saúde é potencializado ao misturar as substâncias.
Esses resíduos de veneno podem ser carregados para a água — por infiltração, chegando ao lençol freático, ou diretamente, para as águas superficiais. Como grande parte das populações em áreas rurais utilizam poços artesianos como fonte hídrica — inclusive o povoado São João —, as chances de contaminação aumentam, já que a água dos poços não tem tratamento.
“Existem já relatos produzidos a partir da análise da água do Cerrado que mostram a contaminação e a presença de vários agrotóxicos, não só um. Isso tudo é muito preocupante. Esses produtos também vão para o solo e podem causar a morte de vários animais. Temos visto a perda de diversidade, como as abelhas — sendo organismos fundamentais para a polinização —, então é realmente um problema”, continua a especialista, também professora Universidade Federal de Goiás, no Instituto de Ciências Biológicas.
O povoado de São João tem forte interesse em saber a qualidade da água que bebem, tanto para reivindicar fiscalização dos poluentes quanto para proteger os rios sem contaminação. Júlia Chaves, ativista ambiental, condutora turística e bióloga, solicitou dois testes para a prefeitura de São Domingos, a fim de saber se substâncias como o glifosato e paraquat — por enquanto, os resultados do requerimento continuam para ser divulgados.
Na água do rio São João, um dos cursos d’água que abraçam o povoado, felizmente não há índices de resíduo poluente. Essa é uma análise feita por um grupo de estudos liderado pelo especialista em ecotoxicologia José Vicente Elias Bernardi, professor da pós-graduação em Ciências Ambientais na Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, o mestrando Rodrigo Marques da Rocha está conduzindo pesquisas sobre a água dos córregos na Reserva Extrativista (RESEX) de Recanto das Araras de Terra Ronca.
Dados científicos sobre a região são ferramentas de empoderamento para as reivindicações dos moradores do povoado. Algumas das medidas organizadas pela comunidade é cercar áreas de nascentes, para evitar ações humanas que possam contaminar ou interferir no fluxo do hídrico, como a presença de gado, desmate e queima. Entretanto, outras medidas também são levantadas para proteger as águas do povoado desses supracitados fatores, incluindo a fiscalização da perda de vegetação nativa e a vistoria das autorizações excessivas dadas pelo Governo da Bahia para poços artesianos.
“Nas nossas águas, considerando as nascentes do sopé da Serra Geral, boa parte da contaminação é por meio de lixiviação (a água lavando e levando para dentro dos rios); ação do vento; e erro no sobrevoo [da pulverização aérea]”, esclarece a ativista Júlia Chaves. Ao longo do processo de pulverização, existem denúncias de que os profissionais ultrapassam a área de plantio e continuam com o aspersor ligado, o que contamina diretamente as nascentes da Serra.
Pela presença quase onipresente de substâncias contaminantes na vida urbana e em muitas áreas rurais, a frustração e o ‘fazer as pazes’ com essa realidade são emoções conflitantes e coexistentes. “Eu sei que eu bebo agrotóxico todo dia. Eu tenho essa consciência porque não existe outra opção. Eu bebo o que está contaminado e como contaminação também. Mas eu sei que se eu for para Goiânia, por exemplo, vou beber uma água muito pior”, desabafa a ativista ambiental.