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Cerrado: tesouro da biodiversidade sob ameaça climática

Savana mais biodiversa enfrenta uma luta desigual contra titãs no coração do Brasil. Nesta batalha, o tempo grita que o prazo era ontem, a voz ainda com esperança, porque há vida. E quanta vida habita o Cerrado!


por Maria Alice dos Santos, Núcleo de Comunicação e Engajamento



Flores de pequi em um dia de sol bonito.



Criada por família mineira na capital federal, não tinha como esperar outra coisa. Entre os meses de outubro e janeiro, cresci inalando a fragrância de pequi em incontáveis finais de semana. Primeiro, o cheiro da casca verde do ouro do coração do país, abrindo alas para o protagonista da cozinha nos últimos meses do calendário.


Ao longo dos anos, a frequência do perfume do Cerrado diminuiu. Para quem cresceu aprendendo a técnica de apreciar um bom pequi cozido sem encher a boca de espinhos, senti falta. Senti tanta falta que comprar molho de pequi na mercearia trouxe memórias ao paladar, sem nem mesmo ter que misturar o líquido amarelo no arroz. Entre conversas no café da tarde, não foram raras as perguntas trocadas entre as mulheres da minha família: aonde foram parar os pequizeiros?


Então eu lembro, novamente, da sombra gentil de um pequizeiro que me viu crescer, acompanhou ano após ano os tênis não servirem mais nos meus pés. Acompanhou de camarote - afinal, habita ao lado da parada do ônibus rural - as broncas que eu recebia assim que minha mãe percebia o meu estado após mais uma aula no segundo ano do ensino fundamental. Como pode o uniforme tão limpo, recém-saído do varal, já estar tão cheio de poeira vermelha?


- Você rolou no chão, Maria Alice?


- Onde estão os pequizeiros, mãe?


Flores de pequi em Cabeceiras, Goiás.


O Cerrado está mais seco e mais quente, a ciência já comprovou isso. Infelizmente, a tendência é o aumento, se políticas públicas não começarem a ser aplicadas efetivamente em um curto prazo. Nesse passo, o pequi - uma importante planta para comunidades tradicionais e locais do velho Cerrado -, o buriti e o murici-do-cerrado correm o risco de ter suas ocorrências e distribuições diretamente afetadas pelo aumento da temperatura.


É o que aponta o estudo Conservation biogeography of the Cerrado's wild edible plants under climate change: Linking biotic stability with agricultural expansion, produzido, em 2015, pelos pesquisadores Guilherme de Oliveira; Matheus Souza Lima-Ribeiro; Levi Carina Terribile; Ricardo Dobrovolski; Mariana Pires de Campos Telles; José Alexandre Felizola Diniz-Filho. A pesquisa considerou um dos cenários mais pessimistas propostos cientificamente em relação ao futuro do planeta. Nele, até 2080, existem 75% de chance da temperatura no Brasil escalonar para mais 4,5 °C. Com base nesse contexto, os resultados indicam a extinção de diversas espécies e alterações na dispersão de alguma delas para a Mata Atlântica.


Essa não é a única pesquisa que indica um cenário pessimista para o pequi e outras plantas cerratenses. O relatório Biodiversidade e Mudanças Climáticas no Brasil, publicado pela WWF-Brasil em 2018, reúne dados que apontam que, ao final do século vinte e um, a mangaba e a arnica poderão ter mais de 90% de sua distribuição reduzida. Consequências na economia local e significativa redução da diversidade genética são esperados diante da projetada diminuição da presença do pequi.



"Respiro de Alívio", por Júlia Papalardo Azevedo.


Dizer que o Cerrado é uma riqueza biodiversa não é exagero. Primeiro, sua vegetação é heterogênea: existem formações florestais, savânicas, campestres e áreas úmidas. O Cerrado da capital federal não é idêntico ao do quintal de uma roça em Cabeceiras, Goiás. As duas expressões, entretanto, compõem o mesmo mosaico - o do bioma mais antigo do mundo. Só de plantas, esse velhinho abriga 12.000 espécies, das quais cerca de 4.000 são suas, ou seja, endêmicas.


Porém, o bioma já teve metade de sua área de vegetação nativa alterada, convertida para pastagens. O cenário de desgaste ambiental é potencializado pela ação humana, o que, por consequência, intensifica a incidência de queimadas na região, por exemplo. A perda de cobertura vegetal e a acelerada criação de sistemas agrícolas na região dificultam a vida de diversas espécies endêmicas. Como resultado, o bioma fica cada vez mais sensível às alterações do clima e seus seres, ausentes de livre arbítrio, encontram duas opções: migram ou extinguem-se.


Outro caso estudado é o do baru, importante fruto para a economia local de muitas famílias. O Relatório Especial do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos, lançado em 2018, mostra que pesquisas preveem perdas de 50% de locais habitáveis para o baru, espécie nativa do Cerrado.


Nesse contexto, é importante dimensionar que os usos de solo são a principal fonte de emissão de gases do efeito estufa (GEE) do Brasil, principalmente pelo desmatamento na Amazônia e no Cerrado. Desse modo, cria-se um ciclo vicioso. Ao desmatar, mais gases de efeito estufa são emitidos. Assim, há mais calor - que entra em contato com a matéria orgânica de forma natural ou provocada - e logo mais queimadas, mais incidentes naturais envolvendo chuvas intensas em pouco tempo e outros eventos extremos. Ao aumentar a concentração dos gases na atmosfera, o clima também é alterado e, por consequência, as espécies enfrentam impactos diretos em sua forma de viver - incluindo a perda de habitats e extinção.


"Cerrado Mineiro", por Júlia Papalardo Azevedo


O Cerrado, de pé, é um ponto fundamental para as negociações climáticas. Sem considerar sua preservação, não existe transição climática com justiça social, redução de desigualdades, economia sustentável (ou economia, de qualquer jeito). A tão almejada - e atrasada - preservação pode ser alcançada por meio de aumento de áreas de proteção, demarcação de territórios indígenas e tradicionais e criação e cumprimento de legislação ambiental e políticas públicas que protejam e considerem, de fato, a heterogeneidade do bioma.


A grande biodiversidade dos ecossistemas cerratenses garantem a subsistência humana não apenas no bioma. Esses recursos possibilitam o sustento de milhões de agricultores familiares e das comunidades tradicionais e indígenas inseridas ali - essa diversidade social é uma das maiores belezas do bioma. Os povos do Cerrado e seus saberes são um grande aliado no ato de cuidar saudavelmente do bioma. Nesse processo, é garantida a promoção dos direitos humanos dos cerratenses tradicionais e indígenas e, também, reforça a urgência de trilhar a estrada da economia - e o dito desenvolvimento - de forma sustentável e justa.



Sumidouro de carbono


Assunto que faz brilhar os olhos das negociações climáticas, no mercado de carbono, o mundo busca por meios de capturar CO2. O Cerrado também se insere nesta discussão, por armazenar grandes quantidades de carbono em suas florestas, principalmente nas raízes e no solo. De acordo com o Resumo expandido do Perfil do Ecossistema Hotspot de Biodiversidade do Cerrado, publicado em 2017, o Cerrado possui 70% de biomassa abaixo do solo.


“Baseado em uma estimativa conservadora de 137,3 toneladas de CO2 por hectare, os 100 milhões de hectares de vegetação natural remanescente no Cerrado contém aproximadamente 13,7 bilhões de toneladas de CO2”, quantifica. À época, o governo federal pretendia expandir, na região do Matopiba, uma área de 73 milhões de hectares na fronteira agrícola. “Se apenas 10% da área for desmatada, as emissões poderiam chegar a mais de um bilhão de toneladas de CO2. Esse aumento cancelaria um terço das emissões evitadas pela redução do desmatamento na Amazônia desde 2004”, explica o resumo, acrescentando que essas emissões são consequência do desmatamento e de queimadas.


"Cachoeira", por Rafael del Prete


As águas do Cerrado


Vermelhas e gritantes são as luzes de alerta para um possível estado de crise hídrica e de produção alimentar no país. Como plantar sem água? Como plantar se os lençóis freáticos não têm tempo para reabastecer a água utilizada para a agricultura em grande escala? E os rios de bacias hidrográficas que dependem das nascentes no velho Cerrado? Alguns desses rios fazem acender as luzes das cidades e das lavouras, por meio das hidrelétricas, matriz energética considerada limpa.


A seca no bioma está se expandindo e intensificando - sugere o estudo “Mudanças na circulação e evaporação atmosférica reduzem chuva no Cerrado brasileiro” (traduzido do inglês) - carregando consigo o potencial impacto no meio ambiente e nas sociedades latino-americanas. A pesquisa analisou a tendência e a frequência de chuvas no bioma entre 1960 e 2021, a partir do recorte sazonal. Como resultado, perceberam - na maioria das estações do ano, exceto o início da seca - significativa redução na frequência de dias chuvosos e na precipitação das chuvas no nordeste e centro do bioma nos últimos trinta anos.


Os piores indicadores foram registrados durante a seca e o início do período mais úmido, em que houve queda de até 50% do total de chuvas. A investigação também demonstra uma mudança considerável na evapotranspiração, umidade do ar e circulação atmosférica, auxiliando no entendimento acerca da redução das chuvas em cada período do ano.


“As mudanças climáticas transcendem as barreiras do Cerrado e reduzem o nível de chuva em outras ecorregiões brasileiras, como a Caatinga, o Pantanal e o sudeste amazônico”, reitera a pesquisa, na qual o primeiro autor é o ecólogo Gabriel Hofmann, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


A diminuição do nível pluviométrico pode causar déficit hidrográfico no Cerrado, além de impactar a recarga dos aquíferos. Vale relembrar que o bioma não é reconhecido com berço das águas atoa: estão na região as nascentes das bacias hidrográficas do Parnaíba, Parnaíba, Paraná, Paraguai, Tocantins–Araguaia, São Francisco e grande parte dos afluentes do sul do rio Amazonas. Localiza-se nele o segundo maior repositório de águas subterrâneas do mundo.


A partir desse desenho, os autores contextualizam que o Pantanal será o local mais afetado pela diminuição de chuvas no Cerrado, pois sua ecologia depende das águas do Cerrado. O bioma pantaneiro, inclusive, é o que mais apresenta tendência à redução em sua superfície aquática nos últimos anos, de acordo com o monitoramento do MapBiomas.


"Cerrado Mineiro", por Bruna Pinto



Com a crise hidrográfica, outra tendência é a intensificação dos conflitos rurais no país, assim como a potencial crise energética e alimentar. Se o uso do bioma continuar do jeito que está, o cenário é assustador: até 2050, o Cerrado pode perder 34% de seu volume de água, equivalendo a um terço de seu potencial completo. Esses são os resultados do estudo A Worrying Future for River Flows in the Brazilian Cerrado Provoked by Land Use and Climate Changes, fruto do trabalho do cientista florestal Yuri Salmona e mais dez pesquisadores, publicado em fevereiro deste ano.


Esse resultado é consequência dos usos do solo pelo setor agropecuário (de acordo com a pesquisa, responsável por 56% da redução) e pelas mudanças climáticas, atribuída a 44% da causa. A possível perda pode ser comparada à vazão de oito rios Nilo, analisa o Observatório do Clima.



Políticas públicas


Enquanto o mundo luta contra o inimigo energético proveniente de combustíveis fósseis, o Brasil precisa lutar contra sua própria história colonialista, carregada de segregação de terras e omissão do Estado em nome de um interesse privado prevalente. Nesse cenário, secam também as políticas públicas voltadas para a proteção do Cerrado.


Não é apenas uma acirrada luta contra o tempo - este não é o titã mais cruel que o Cerrado enfrenta. O clima no Cerrado já está quase 1 °C mais quente e 10% mais seco, indica o artigo Cerrado deforestation threatens regional climate and water availability for agriculture and ecosystems, fruto de pesquisadores da Universidade de Brasília e com colaboração de outras universidades e instituições de pesquisa. A causa desse fenômeno de seca é a mudança nos usos do solo, a partir da conversão da vegetação nativa de florestas, savanas e campos em pastagens e para agricultura.


"Paisagem Cerratense no Parque das Sucupiras - DF", por Rosíndia Cartagenes


Então, de fato, o que pode ser feito? Mercedes Bustamante, em entrevista à TV Senado, explica. As áreas já degradadas do Cerrado, ao serem incorporadas em projetos de recuperação ecológica, podem ter seu potencial produtivo estimulado e, no processo, sequestrar carbono também. Desse modo, a agricultura desenvolvida ali pode ser de menos impacto, o que reduziria o desmatamento em outras áreas nos 50% restantes do bioma. Desse modo, a professora do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília e presidenta da CAPES afirma que é preciso trabalhar para um plano de manejo e recuperação e uso dos recursos naturais do Cerrado de forma sustentável, a partir de políticas públicas que considerem suas diversidades, biológica, estrutural e natural.


Nesse cenário, inserem-se também as Áreas Protegidas e Unidades de Conservação. Alinhado a isso, é necessário o diálogo com a esfera privada, detentora de boa parte do Cerrado, a fim de ampliar a proteção do bioma nessas áreas, seguindo o Código Florestal e, também, aplicando decisões protetivas e restaurativas complementares. Reaviva-se, portanto, o debate da Moratória da Soja e do desmatamento zero na região para, ao menos, arranhar as medidas necessárias para evitar transformações ainda mais desastrosas.


Por fim, a essencial produção de conhecimento científico. Dados para análises, investimento para universidades e instituições de pesquisa são ferramentas primordiais para a proteção e restauração do velho Cerrado. E, por consequência, da mitigação das mudanças climáticas.


Sem Cerrado, não há estabilidade climática.

E, muito menos, vida.


Conteúdos para aprofundar neste debate e se munir de conhecimento para a proteção do velho Cerrado!


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