O quanto estamos
vulneráveis no Distrito Federal
Na capital federal, riscos climáticos escancaram vulnerabilidade e alertam para urgência na adaptação das cidades e do meio rural
Maria Alice, A Vida no Cerrado. 18 de dezembro de 2023.
Por aparecer no mapa do Brasil como um quadradinho no meio do Planalto Central, sem registro de grandes inundações ou deslizamentos de terras, o Distrito Federal não é um território com destaque no debate das mudanças climáticas no país. Entretanto, a região reúne desigualdades sociais que potencializam as vulnerabilidades decorrentes de eventos extremos associados ao clima, tais como o estresse hídrico, as ondas de calor, os incêndios florestais e os riscos geológicos.
Pegadas nesta terra contam histórias de vulnerabilidade climática.
Gaia pula a janela da pequena casinha - suponho que o espaço seja a despensa agrícola da chácara. Minha atenção se desvia, por segundos, da conversa com Maria Aucineide Silva. É urgente observar a gata preta se aproximar, faceira e alheia aos latidos dos cachorros no canil. Magnetizada, estico as mãos para oferecer carinho à pequena divindade.
O ar tem cheiro de vento e bolo de laranja.
Gaia, em homenagem à deusa grega Mãe-Terra. Evoco sua memória para escrever uma reportagem cuja alma é a Terra, sua homônima, e o corpo é o Cerrado, seu ancião. Não poderia esquecer nem se quisesse, porque carrego retinas gêmeas às de Ailton Krenak, quem diz:
É a Natureza do Distrito Federal, por meio de suas pessoas, histórias, memórias e cores, que guiará esta reportagem pela terra vermelha.
Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.
Campo no Lago Oeste, na Chapadinha, região com forte atividade de agricultura familiar.*
*Todas as imagens sem créditos são de nossa autoria.
capítulo um
Emissões de gases do efeito estufa no Distrito Federal
Trânsito na Estrada Parque Taguatinga, às 8h50, na entrada do Octogonal.
O planeta, em seus aproximados 4,5 bilhões de anos, já passou por muitas mudanças. Transformações aconteceram e acontecem por diversos fatores, como os processos naturais de glaciação, vulcanismo, o movimento das placas continentais e outros eventos geológicos.
Ao longo dos últimos dez mil anos, nossa humanidade criou ferramentas capazes de manipular a Natureza, as quais interferem em diferentes intensidades e atendem a diversos interesses (sobrevivência humana é um deles). Há um século, desenvolvemos tecnologias fortes o suficientes para provocar mudanças ambientais sem precedentes e irreversíveis, incluindo alterações nos ciclos biogeoquímicos do planeta. Recordes no aumento de temperatura, chuvas catastróficas, alagamentos e enchentes drásticas, secas históricas e ondas de calor são consequências extremas de alterações do clima causadas pelo impacto das ações humanas na Terra.
A partir de 1850, o aumento da liberação de gases poluentes na atmosfera - com destaque para o CO2, dióxido de carbono - potencializou e agravou os efeitos das mudanças climáticas. Por conta das emissões decorrentes do desmatamento, o Brasil está em quarto lugar no ranking de maior emissor global na história. Os dados fazem referência ao período analisado de 1850 a 2021, de acordo com o levantamento do think tank, do site de notícias climáticas Carbon Brief.
Os Estados Unidos ocupam o primeiro lugar de emissor (responsável por 20% da liberação de CO2 planetária), seguido pela China (11%), Rússia (7%), Brasil (5%) e Indonésia (4%). O projeto considera o emitido pela queima de combustível fóssil, mudanças de uso do solo, produção de cimento e desmatamento.
Aspectos são indissociáveis, além do desequilíbrio ambiental, nosso presente e futuro é desenhado pela desigualdade nas relações sociais. O 1% mais rico do mundo (equivalente a 77 milhões de pessoas) emite a mesma quantidade de gases poluentes que 66% das pessoas no planeta - ou seja, a mesma quantidade que 5 bilhões de habitantes da Terra, de acordo com o relatório Igualdade Climática: um Planeta para os 99%, produzido pela Oxfam Brasil. Os dados são referentes a 2019: nesse ano, apenas este 1% foi responsável por 16% das emissões globais de carbono.
Os números são alarmantes: as previsões indicam que, em 2030, esta pequena parcela da população poderá emitir 22 vezes mais do que o limite seguro (marca de liberação de gases estipulada para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C). As estimativas também sugerem que a taxa de emissões desta minoria, em 2019, são suficientes para causar 1,3 milhão de mortes excessivas devido ao calor entre 2020 e 2100.
A pesquisa ressalta a justiça climática como algo basal no processo de redução das emissões e na construção de uma sociabilidade sustentável. Quem polui mais, deve financiar a transição energética, afinal, as emissões anuais do 1% mais rico do planeta anulam a redução de carbono de quase um milhão de turbinas eólicas. Nesta lógica, a Oxfam calcula que “um imposto global de 60% sobre os rendimentos do 1% mais rico do mundo arrecadaria US$ 6,4 trilhões para financiar energias renováveis”.
No primeiro dia da Conferência das Partes de 2023 (COP28), em Dubai, nos Emirados Árabes, a elite climática começa a ser cobrada: no primeiro dia do evento (1/12), foi aprovado o Fundo de Perdas e Danos, criado na COP27, no Egito. Alemanha, Reino Unido, Emirados Árabes, Estados Unidos e Japão se comprometeram a financiar o Fundo, ao qual a primeira doação é de US$ 400 milhões de dólares e começará a ser pago em 2024.
A partir de setembro de 2023, as ondas de calor chamaram a atenção dos brasileiros, propiciando espaço para o relevante debate de eventos extremos, contextos, causas e efeitos. O ano também foi marcado pelas secas e inundações no país. No sul global, envolto e inserido no Cerrado, os habitantes do Distrito Federal puxam pela memória alguns acontecimentos decorrentes das mudanças do clima pela memória.
A grave crise hídrica entre os anos de 2016 e 2018, quando os principais reservatórios de abastecimento marcaram nível abaixo do volume útil. Enxurradas e enchentes marcaram 2021: durante a pandemia da Covid-19, moradores da Vila Cauhy, no Núcleo Bandeirante, foram resgatadas quando o córrego do Riacho Fundo transbordou. Ruas alagadas no Sol Nascente e Pôr do Sol, em Taguatinga e Vicente Pires são rotina quando chove.
Desde o começo de setembro, as intensas e pungentes ondas de calor te fazem considerar comprar um ar condicionado ou ventilador. Perguntas como “será que cabe no orçamento?” e “como fica a conta de energia?” acompanham a canseira física decorrente da temperatura. Nossos mais velhos reclamam, mais indispostos ou irritadiços do que o normal, as dores crônicas agravadas pelo desconforto térmico não viram manchete.
Outros acontecimentos, sim. A redução das chuvas em outubro e a seca violenta na Amazônia fazem o peito se apertar, milhares de vidas sofrer e a ansiedade climática torcer o estômago.
Essas pegadas cotidianas já marcam, em terra e lama vermelha, o seu acordar e adormecer diários. São os efeitos das mudanças do clima no mundo, no Brasil, no Centro-Oeste, no Distrito Federal, na sua rua. A causa disso tudo? Emissão dos gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera terrestre.
Quadradinho cerratense lar de quase três milhões de pessoas, são 2.817.381 habitantes no território de 5.760,784 quilômetros quadrados do DF, de acordo com o Censo de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A atmosfera terrestre, entretanto, não distingue as fronteiras nacionais e internacionais convencionadas pela humanidade.
Localmente, o principal emissor de GEEs é o setor de mobilidade - ligado ao de energia -, por conta da queima de combustíveis fósseis, derivados do petróleo. O setor de mudanças e transições de uso do solo ocupa o segundo lugar e, em terceiro, está o de resíduos e efluentes, de acordo com o Inventário de Gases do Efeito Estufa no Distrito Federal (2005-2018), divulgado em 2021.
Em 2018, o DF emitiu 9.518.762 milhões de toneladas de carbono equivalente (tCO2e). 48% é responsabilidade do setor energético; 23% decorrentes da mudança do uso da terra e florestas; 14% por resíduos e efluentes; 11% de processos industriais; e, por fim, 4% do setor agropecuário.
Comparado ao cenário nacional, a capital não é um grande problema de emissão. No mesmo ano, o país emitiu quase dois bilhões de toneladas de carbono equivalente (1.989.409.556 tCO2e), em que o setor mais poluente é o de mudanças de uso do solo. O levantamento é do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), maior plataforma de monitoramento do assunto na América Latina.
Ao compararmos o cenário de emissão distrital com os dados do SEEG, o setor energético se mantém com a infeliz medalha de ouro. Há uma divergência com o Inventário quanto ao segundo lugar: pelo SEEG, o setor de resíduos ocupa a posição, seguido pelo bronze processos industriais. Mudanças no uso do solo e agropecuária, mesmo se somados juntos, ainda não alcançam a marca de emissão do terceiro lugar.
Talvez as consequências mais explícitas das mudanças climáticas sejam a intensidade e frequência da estiagem no Distrito Federal, acompanhada pelo aumento da temperatura média e os fenômenos de ondas de calor. Esta última é marcada desconfortavelmente na memória da população do Distrito Federal desde setembro deste ano. No caminho histórico das estações, o mês nove é quando o calor deve enfraquecer, para retornar a precipitação no quadradinho. Porém, estamos acompanhando o protelar da seca e a saudade das chuvas.
O segundo semestre de 2023 está marcado pelo fenômeno das ondas de calor no Brasil. No dia 13 de novembro, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu alerta de perigo para 13 estados e o Distrito Federal, avisando que ao menos 1.100 municípios brasileiros seriam impactados por este evento extremo.
Gustavo Baptista, especialista em Sensoriamento Remoto e experiente pesquisador em questões ambientais urbanas, explica que uma das razões da intensidade e duração das ondas de calor - especificamente, de setembro até novembro - é a conjugação do El Niño intenso com o aquecimento anômalo do Atlântico Norte e do Atlântico Sul. Esses dois eventos são conhecidos por controlar o clima.
"Devemos considerar a intensidade do fenômeno El Niño, mas isso é resultado de intervenções humanas. É um cenário em que as mudanças climáticas batem na porta e entregam um boleto caro, cobrando nossas ações humanas", complementa o professor do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (IG/UnB).
Diante do cenário, fica a questão: ainda há tempo? O pesquisador responde um “claro” confiante, seguido pela condição de estratégias inteligentes para tal.
Placa de atenção para lombada, no caminho para a Chácara Imperial, em Brazlândia.
Mobilidade Urbana
quarteto de emissões
Sempre sentados juntos no ônibus das oito horas, duas pessoas compartilham um par de fones de ouvido. Fico curiosa para saber qual a trilha sonora pessoal e urbana, tocada ao longo dos 50 minutos da viagem de Vicente Pires até a Rodoviária do Plano Piloto. Ela, de cabelo curto, denso e grisalho, assiste à visão cotidiana pela janela: o percurso da marginal da EPTG, o trânsito, o sol matutino, a terra vermelha exposta pelas obras. Ele, de cabelo levemente mais curto em comparação ao dela e sempre em um rabinho de cavalo fino, é quem cuida das músicas. No final do Eixo Sul, tira calma e cuidadosamente os fones, os enrola e guarda na bolsa.
Estamos quase no destino final. Estamos no começo de um dia.
A caminho de uma das paradas na Asa Sul, na sombra de árvores altas e floridas, vestidas em amarelo.
No Distrito Federal, o ano com maior quantitativo de emissão foi 2015. Pelos dados do SEEG, foram 8,8 milhões de toneladas (8.804.264) liberadas na atmosfera. Apenas o setor energético - responsável pela produção de energia elétrica e transportes ferroviário, rodoviário e aéreo - emitiu 5,1 milhões de toneladas (5.133.303) de gases do efeito estufa, equivalente a 58% do total acumulado por todos os setores. O transporte rodoviário é o responsável pela maior parte da emissão, principalmente por conta dos veículos particulares.
Baseando-nos no Inventário de GEEs, no primeiro ano da análise, em 2005, o transporte rodoviário representou 60% das emissões totais (gases CO2 , CH4 e N2O) no setor. Enquanto o setor inteiro emitiu 3.628,955 mil toneladas, apenas a categoria rodoviária liberou 2.178,012 mil toneladas. Em 2018, último ano analisado, foram lançadas 2.529,581 toneladas de carbono equivalente (mil tCO2e) decorrentes do transporte nas estradas. O total de emissão do setor energético no período foi de 4.580,768 mil tCO2e, o que coloca o transporte rodoviário como agente emissor de 55,2% do montante, em 2018.
Como criança que de repente se espicha, a intensidade do trânsito no Distrito Federal salta aos olhos dos trabalhadores e estudantes. É mais um fator estressante para quem se locomove diariamente pelas principais estradas locais - Via Estrutural, Parque Taguatinga (EPTG) e Parque Núcleo Bandeirante (EPNB), responsáveis por conectar o caminho do trabalho e escola até nossas casas.
O cenário é estressante o suficiente para fazer com que algumas pessoas considerem desistir do trabalho com transporte particular, como é o caso de Hélio Júnior, que atua nesta área há sete anos.
“Eu estou realmente pensando em desistir do trabalho por aplicativo, porque está complicado. O retorno é muito pequeno e, com a alteração no clima, os desequilíbrios como calor excessivo trazem um desconforto muito grande, o cansaço é intenso. No trânsito, isso gera perigo. Quando chove, o trânsito se torna ainda pior, especialmente devido, também, às obras que estão acontecendo no DF”, relata Hélio Júnior.
Cumprindo a agenda de infraestrutura rodoviária, desde 2019, o Governo do Distrito Federal (GDF) mobilizou mais de R$400 milhões em 91 obras locais. Iniciada em dezembro de 2022, apenas a revitalização da Estrutural custou R$55 milhões - o investimento geral é de aproximadamente R$80 milhões. Estima-se que, após essa pavimentação, a via não precisará de reformas nos próximos 20 anos.
Via Estrutural em obras. Trânsito na altura da Cidade do Automóvel, às 16h, pouco tempo depois da chuva.
Cinna Luzia Almeida, graduanda em Serviço Social na Universidade de Brasília (UnB), morou por 22 anos em Taguatinga. Suas memórias são de desconforto ao pensar trânsito do Distrito Federal - especialmente na Estrutural e EPTG.
"O trânsito, que já era intenso, se transformou em algo detestável. Antes da obra, ir para a UnB de ônibus demorava aproximadamente 1 hora e 30 minutos. Neste ano, outras obras foram sendo desenvolvidas, houve momentos em que o trajeto de Taguatinga para o Eixo Monumental, no Plano, levou três horas", desabafa.
O fluxo na Estrada Parque Taguatinga se intensificou - congestionamento para ir e voltar do Plano Piloto não é mais característica apenas dos horários de pico.
"Você fica num dilema entre utilizar o transporte público ou um individual e pensa “vou usar o carro porque chego mais rápido”. Realmente, mas todos os dias as rodovias estão engarrafadas por acidentes de automóvel. E é inevitável, com o tanto carro nas ruas", percebe a estudante.
"No meio urbano, o desconforto térmico causado pelo calor afeta muito as pessoas que utilizam o transporte público. Isso já é uma forma de redução da qualidade de vida: chega no trabalho suado, cansado e estressado. Na volta, passa pelo mesmo processo de novo. Adicionado a isso, estão todas as outras questões de mobilidade urbana – que são péssimas também", analisa Vitor Sena, biólogo, cerrativista e coordenador do Núcleo de Advocacy da organização da sociedade civil A Vida no Cerrado.
Saúde e mudanças climáticas são como carne e unha na construção de caminhos para mitigar os eventos extremos e adaptar os espaços para tal contexto. O cenário climático dificulta a qualidade de vida do casal do ônibus, aquele que compartilha os fones de ouvidos, e de mais da metade da população do DF que utiliza transporte público diariamente
São centenas de milhares de pessoas que trilham seus caminhos em um, dois ou mais dos 2,8 mil ônibus do Distrito Federal, em uma, duas, três ou mais das 840 linhas. Sem contar os residentes do entorno que trabalham ou estudam em alguma das regiões administrativas e enfrentam preços altos para o transporte rodoviário lotado, demorado e de baixa qualidade. Os que têm estradas de ferro em suas RAs viajam em alguns dos 32 trens do metrô.
"E se o ônibus quebrar?", a pergunta vive na boca ou na cabeça. É algo tão comum quanto o canto da sabiá. Fico aliviada quando compartilham a localização do transporte no grupo de moradores, porque significa que, naquele dia, ele vai aparecer.
Rodoviária do Plano Piloto, em 2019.
"E se o sistema metroviário e a Rodoviária do Plano Piloto privatizarem?", questiona Cinna Luzia. "Aonde isso vai parar? Porque sabemos que quando a iniciativa privada se apropria de um serviço público, os preços aumentam e a garantia do acesso à população fica mais limitado", a crítica sai como desabafo também.
A partir do meio da rua 6, quem espera o 946 às seis da manhã sabe que vai em pé junto com o calor crescente, a dor de cabeça, o estresse vestido de café da manhã. Durante uma hora e quarenta minutos, o ônibus parte de Vicente Pires até a Rodoviária do Plano Piloto. Nem é uma região administrativa tão distante, mas no DF, todos os caminhos levam ao Plano. Das 16h30 em diante, quem sai da rodoviária divide o pôr-do-sol com irritação e o cansaço elevado à potenciação de distâncias siderais. Pela janela, vemos a lua assumir o céu brasiliense.
A experiência social do presente distrital está diretamente ligada à história da jovem Brasília.
"No início da construção da capital federal, se dizia muito que o habitante daqui é formado por cabeça, tronco e rodas, como se isso fosse um grande negócio. Uma grande bobagem. Eu adoraria, por exemplo, não precisar de carro para vir ao campus Darcy Ribeiro, da Universidade de Brasília", desabafa o professor do Instituto de Geociências Gustavo Baptista.
Geocientista especializado em Sensoriamento Remoto e podcaster, Gustavo desabafa o quanto não gosta de dirigir e que adoraria se locomover para o trabalho de metrô. Ele relembra que cidades históricas e muito mais antigas que Brasília possuem sistemas metroviários e ferroviários articulados. É o caso de Paris, na França, onde a cada 500 metros há uma estação de metrô.
Em sua análise, o professor espelha um sentimento não solitário de que a cidade sexagenária poderia ser um caso de sucesso no cenário de adaptação, onde há espaço para inovar e se distanciar de modelos ultrapassados no planejamento urbano. "A gente precisa repensar esse modelo de cidades adensadas e buscar uma forma mais tranquila de existir no meio urbano. Ainda vivemos uma lógica intensa de deslocamento para lugares centrais, ao invés do aproveitamento da população nas suas localidades".
Propostas para mitigar as emissões de gases do efeito estufa no quadradinho
Subterrâneo da Rodoviária de Brasília, em 2019. Foto de Beatriz Carvalho, alguém que utiliza rotineiramente o transporte metroviário do DF.
O cenário de emissão local é reconhecido pelas pesquisas públicas realizadas e divulgadas pela Secretaria do Meio Ambiente do Distrito Federal. Por isso, a fim de traçar estratégias de redução das emissões de GEEs do transporte, em 2021 foi publicado o Plano de Mitigação. Nele, para reduzir a taxa de liberação de gases, são sugeridos o fomento ao teletrabalho; a “expansão do metrô”; a aplicação do veículo leve sobre trilhos (VLT); e a ampliação do BRT.
Quando conversamos sobre a possibilidade de mudanças de comportamento para mitigar as emissões no Distrito Federal, o professor e pesquisador Gustavo Baptista foi otimista ao analisar a brecha de tempo para ação humana. Corremos contra o tempo para evitar cenários desastrosos e inóspitos.
“Ainda há tempo? Claro que há. A pandemia foi um momento interessante para a gente entender a capacidade de suporte e resiliência planetária. A gente viu muita coisa voltando a um grau de normalidade climática e de emissão quando foram aplicados os lockdowns tanto na Ásia como na Europa e também no continente americano”, relembra o professor.
Durante a quarentena de 2020, as emissões de dióxido de carbono foram reduzidas em 2,4 bilhões de toneladas em 2020, de acordo com o Projeto de Carbono Global, do Future Earth. “Se a gente fizer ações de preservação e criar estratégias para ampliar a quantidade de vegetação, no caso brasileiro; e, para o restante do mundo, principalmente mudar matriz energética de vários países, conseguimos reverter esse processo de emissão. O Brasil já tem uma característica de ser vocacionada à sustentabilidade por ter uma matriz energética mais limpa. O problema nacional é o uso do solo”, complementa Gustavo Baptista.
O problema local, entretanto, é a mobilidade. Para isso, a primeira medida de mitigação apontada no Plano dialoga com um dos aprendizados destaques na fala do professor: o trabalho remoto como possível estratégia para diminuir o número de carros particulares nas rodovias do DF.
Com a adoção do híbrido pelos órgãos públicos, o plano calcula a diminuição de 22,2 mil toneladas de dióxido de carbono. A estimativa parte do pressuposto de que 20% dos servidores públicos trabalhariam nesse formato, o que reduziria 25 mil veículos em uma frota de 1.402.600 veículos.
Por mais que a expansão do sistema metroviário seja uma estratégia, o planejamento público adaptativo e de mitigação para as mudanças climáticas no Distrito Federal não caminha para esta solução. Apesar de descrever no documento como “expansão do metrô”, o Plano de Mitigação menciona apenas a decepcionante proposta de aumentar o uso de painéis fotovoltaicos nas estações do metrô, com o objetivo de reduzir o gasto com eletricidade e aumentar a autoprodução.
A medida, entretanto, não reduz significativamente a emissão do transporte no DF. Como a geração energética no DF é, em maioria, renovável, o efeito redutivo da emissão não terá grande impacto. As previstas quatro usinas podem gerar cerca de 5 megawatts de energia limpa, o que aliviaria em torno de 33% o consumo elétrico atual do metrô (equivalente a 15 megawatts).
Caminhamos, então, para a terceira sugestão: a aplicação do veículo leve sobre trilhos (VLT) no DF. A prática reduziria a liberação de 55 mil toneladas de dióxido de carbono e diminuiria a circulação de 1.600 ônibus por dia. A proposta do VLT é substituir as linhas de ônibus que passam pelas vias W3 Sul e Norte, no Plano Piloto. As linhas substituídas seriam aquelas em que o embarque acontece nas demais regiões administrativas. Ao final da viagem, os ônibus deixariam os passageiros no Terminal da Asa Sul (TAS) ou da Asa Norte (TAN), onde poderiam fazer integração para o transporte sobre trilhos, com o custo da passagem incluído no bilhete único de integração.
A arte e o cuidado encontram espaços na rotina cansativa de quem usa transporte público, como é o caso de Letícia Mirelly, autora da foto.
Por fim, a quarta solução sugerida pelo Plano é a ampliação do BRT, o que possibilita o aumento da qualidade do transporte público - pensando na rapidez das viagens, aumento de frequência, atendimento a um grande número de passageiros e redução do transporte individual. A aplicação envolve substituir a frota de ônibus existente pelo sistema BRT.
Essa conversão reduziria 338 mil toneladas de CO2, calcula o Plano. O cenário da estimativa considera a inclusão de 10% de ônibus no sistema e a ampliação posterior para 30% dos ônibus e micro-ônibus restantes. Dentre as propostas indicadas para o setor de mobilidade, é a que apresenta o maior potencial de controle de GEEs.
Mudança de uso da terra e florestas
quarteto de emissões
De cá para lá, aquela garrafa de refrigerante vazia rodava no chão, aspirante a bola de futebol. Era personagem principal do aquecimento físico dos alunos da escolinha de futebol. Os pedidos de passe precederam a chegada da turma na quadra ao lado da Escola da Vila Basevi, em Sobradinho. Atrás de nós, o sol do fim de tarde estava animado para assistir às partidas.
"A vila é a nossa casa", uma das moradoras conta carinhosamente. "É claro que a gente cuida. Temos orgulho de morar dentro de uma reserva".
O Cerrado abriga os moradores da Vila Base há 40 anos, como se escolhesse preferidos. A população ali já viu famílias de antas apreciando a época das mangas, as câmeras de segurança já registraram lobos-guará. Esses são alguns exemplos da riqueza de seres que habitam a Reserva Biológica de Contagem, muito próxima do Parque Nacional de Brasília.
Lembrar da Vila - cuja história de ocupação remonta à invasão da área por trabalhadores da empresa de pavimento Basevi - faz ressoar, também, a fala do cerrativista e biólogo Vitor Sena.
Eu sou o Cerrado e o Cerrado sou eu.
Em poucos minutos, a partida começa, energizada, na quadra ao lado da Escola Basevi e da Associação Comunitária local.
O maior desafio ambiental na capital do país é a adaptação às mudanças climáticas - processo urgente e de caráter emergencial, envolvendo diretamente a organização de cada uma das regiões administrativas, incluindo seus espaços urbanos e rurais. Essa é a análise de André Lima, secretário extraordinário de Controle de Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial no Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. Sua percepção local vem de quatro anos como secretário de Meio Ambiente do Distrito Federal (entre início de 2015 e fim de 2018).
"Ano após ano o DF bate recordes de temperatura, inclusive noites contínuas com temperaturas acima de 25 graus e dias consecutivos com umidade do ar abaixo de 15%. Também temos os eventos climáticos extremos das chuvas", o secretário especial dimensiona o contexto em que as medidas adaptativas são emergenciais, não apenas preventivas.
"O Distrito Federal precisa, por exemplo, adaptar toda a sua parte de drenagem, algo fundamental. Isso implica também em [repensar] todo um ordenamento urbano", avalia André, fazendo referência a uma das principais vulnerabilidades climáticas do DF, as enchentes e enxurradas.
Construção de cidades, separação das áreas destinadas à agricultura e agropecuária, seleção de espaços de proteção do Cerrado nativo e criação de unidades de conservação (UC) são exemplos das formas que a sociedade humana utiliza a terra. Estas decisões entram na análise de mudanças do uso do solo, que consideram, também, o desmatamento - a maior fonte de liberação de gases poluentes no Brasil.
No Distrito Federal, o segundo maior emissor é o setor de mudanças e transições do uso da terra.
Comparativo entre 37 anos: primeiro slide é referente ao ano de 1985 e o segundo é de 2022.
As duas principais fontes de gases do efeito estufa neste setor são as transformações de floresta para formação campestre e a conversão do Cerrado nativo para pastagem. Os dados são do Inventário de Gases do Efeito Estufa, documento que avalia as emissões do Distrito Federal no período de 2005 a 2018. Somadas, esses usos correspondem a mais de 80% da liberação de GEE do setor e a mais de 90% de emissão na subcategoria de gramíneas.
Ao analisar a perspectiva histórica de uso do solo (1986-2018) apresentada no Inventário, os anos com maior emissão foram, respectivamente: 1991 (mais que 9 milhões de toneladas de CO2); 1986 (aproximadamente 9 mi de toneladas de CO2); 1999 (um pouco mais que 8 mi de toneladas); 1988 (mais que 7 mi de toneladas) e 2013 (6 milhões de toneladas de dióxido de carbono).
Quando o secretário extraordinário responsável por conter o maior problema ambiental do Brasil analisa o cenário climático do Distrito Federal, ele destaca a infraestrutura urbana e ambiental como pontos de atenção.
Uso do solo no Distrito Federal em 2022
Fonte: MapBiomas
Quase metade da cobertura do solo do Distrito Federal é voltado para o setor agropecuário, o total de 46,62%, correspondente a uma área de 268.585 hectares. Esta porcentagem é três vezes maior do que a área urbana, que inclui os espaços de habitação e serviços comerciais, públicos e infraestrutura. De acordo com o monitoramento histórico do MapBiomas (de 1985 até 2022), este último tipo de ocupação representa 12,5% do território do DF, equivalente a 72.296 hectares de área.
Áreas naturais, como formações savânicas e florestais, representam 183.382 hectares (31,83% do território) da região, ao passo que 45.823 hectares (7,96%) são áreas campestres e campos pantanosos ou alagados.
A forma com que o DF se organiza implica, também, na gestão de uma de suas principais vulnerabilidades climáticas: a disponibilidade hídrica.
“No caso específico do Distrito Federal, um dos problemas é a manutenção das áreas de recarga de aquífero. [Essa gestão é importante] para que possamos manter os reservatórios e o lençol freático abastecido, para que a gente possa passar a temporada de seca sem precisar fazer nenhum tipo de corte de consumo de água, por exemplo”, explica André Lima.
O secretário especial analisa que “o planejamento do uso de ocupação do solo, o comprimento do Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) e as agências que tratam dos temas de saneamento básico de drenagem e de outorga de água - principalmente a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do DF (Adasa) e a Companhia de Água e Esgotos de Brasília (Caesb) -, precisam entender que nem tudo se resolve com obras para captação de água ou para tratamento de água e esgoto”.
“É preciso incorporar a infraestrutura verde, que são as Soluções Baseadas na Natureza, o que significa incorporar o Cerrado, as áreas de recarga de aquífero, nascentes e as áreas de proteção dos mananciais. Sobretudo na região do Descoberto, onde existe uma pressão para loteamento e para urbanização de áreas rurais fundamentais para manutenção da capacidade de produção hídrica e de suporte”, esclarece.
O Distrito Federal - um ecossistema interligado a tantos outros - é fortemente influenciado pelo que acontece no estado de Goiás, assim como pelos outros estados de Cerrado e do restante do país. Por exemplo: uma das consequências do desmatamento no bioma é a alteração no microclima local e regional. Esses contextos devem ser considerados também no planejamento adaptativo, o que abre possibilidades de articulação com outros estados e municípios.
O Cerrado está mais seco e mais quente. A temperatura média do bioma já aumentou quase 1°C grau (precisos 0,9°C) e sua umidade reduziu 10%. A principal causa é a passagem da vegetação nativa para pastagens e agricultura, realizada por ação humana. Esses são dados do estudo “Desmatamento do Cerrado ameaça clima regional e disponibilidade de água para agricultura e ecossistemas” (tradução do inglês), no qual a primeira autora é a pesquisadora Ariane Rodrigues, vinculada ao Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
"O Distrito Federal é um quadradinho no meio de Goiás e recebe influência do que acontece ao redor. Durante o governo Bolsonaro (2019-2022), vimos o desmatamento aumentar também em áreas de urbanização antiga no estado vizinho, onde, antes, acontecia o processo de expansão agrícola para áreas de pastagens. Agora, o desmatamento voltou a crescer. São fatores locais, como a pesquisa mostra, que aumentam a vulnerabilidade da região. Isso interfere no DF, principalmente na temperatura local [do Cerrado]. Na fronteira com a Caatinga, por exemplo, a temperatura atinge mudança de 5°C na temperatura", examina a cientista ambiental Ariane Rodrigues.
Em sua atual pesquisa de doutorado, Ariane analisa as transições de uso de solo de cada estado cerratense, no período entre 1986 e 2021, com base no MapBiomas. Ao olhar para o Distrito Federal, ela percebe um processo bem dinâmico do uso do solo, em que “tudo acontece ao mesmo tempo”.
Alguns dos pontos destaques é que a conversão direta da vegetação para agricultura não é tão expressiva no território. O processo da agricultura expandindo para as pastagens já abertas é mais consolidado, um fenômeno normal em áreas mais antigas de uso do solo, como é o caso do DF. Entretanto, fica um alerta: Ariana Rodrigues observa a volta intensa e frequente do desmatamento local, acompanhado do abandono de áreas com pastagem e, em outros pontos, a expansão da agricultura sobre esses pastos deixados.
Esta última forma de transformação do uso do solo é algo a ser incentivado, explica Ariane. A expansão das novas áreas de produção de grãos sobre as pastagens já abertas e subutilizadas é um caminho para aumentar a agricultura sem novos desmatamentos, continua a especialista. Dessas transições, a mais alarmante é a conversão da vegetação nativa para pastagens.
O Plano de Mitigação propõe reduzir a conversão de áreas florestadas em pastagens em 26% até o ano de 2025. Para 2030, a meta é diminuir em 50% esta forma de mudança de uso do solo, tendo como parâmetro a média anual histórica entre 2005 e 2018. Como resultado, para 2025, 957.367 toneladas de dióxido de carbono deixariam de ser emitidas; e, para 2030, seriam menos 1.849.100 milhão de toneladas de gases na atmosfera.
Paisagem do Cerrado na área de proteção ambiental de Chapadinha, no Lago Oeste.
Emissão por incêndios florestais
Quando o fogo vem, não é só mais dióxido de carbono, óxido nitroso e metano liberados na atmosfera da Terra. Vai para além do debate de emissões e da degradação ambiental.
Quando o fogo vem, traz a perda de anos de trabalho de agrofloresteiros no Assentamento Canaã, em Brazlândia. É o sufoco no coração que Maria Quitéria, mãe solo, sentiu ao perder todas as suas agroflorestas para um incêndio criminoso causado por grilagem nos arredores.
A fumaça faz prender a respiração por diversos motivos. É desenhada pelo bolo na garganta, amálgama de emoções. Faz lembrar o simbólico fogo criminoso que estalou no dia do Cerrado, em 2023, deixando para trás mangueiras derretidas, troncos mimetizando carvão e vidas carbonizadas.
No dia da visita à chácara de Flávio Cerratense, no Assentamento Canaã, o agricultor estava recebendo juventudes do MST do Brasil inteiro. Na foto, jovens participam da oficina de agrofloresta, em um dos canteiros que não foi afetado pelo fogo.
Decorrentes do fogo, 2,8 milhões de toneladas de carbono equivalente (tCO2e) foram emitidas entre 2005 e 2019, de acordo com as estimativas do Plano de Mitigação distrital, divulgado em 2021. A emissão média de metano foi de 14,56 mil tCO2e e 0,97 mil tCO2e de óxido nitroso; a média histórica geral foi de 15,5 mil toneladas. No mesmo período, 19.602,8 hectares do território do DF foram atingidos pelas queimadas.
Para 2024, o Plano sugere a redução de 25% das emissões por incêndios florestais, e 50%para 2030. Ao total, seriam evitados a liberação de cerca de 3,9 mil e 7,8 mil toneladas de CO2e, respectivamente. Esta ambição está presente, de forma indireta, no compromisso posto pela Contribuição Distritalmente Determinada do Distrito Federal (CDD-DF), documento que também considera o plano de redução de gases voltado às transições do uso do solo e desmatamento.
Na Chapada Imperial, o ano de 2022 foi marcado por um intenso incêndio florestal que demorou semanas para ser contido. A família Imperial perdeu alguns cavalos para o fogo, carcaças de jabutis foram encontradas carbonizadas. O fogo foi tão alto e intenso que atingiu as palmeiras do buriti e deixou o solo em cinzas. Estas fotos foram tiradas um ano depois do incêndio.
O fogo, distúrbio natural do Cerrado diante das condições adequadas e na temporada certa, é um agente ecossistêmico para o bioma. O fogo oriundo de incêndios florestais não se enquadra como ferramenta de manutenção da vida cerratense.
Este é quem transformou, em 2022, parte do solo da Reserva Particular do Patrimônio Natural Chapada Imperial em cinzas escuras. Fogo, alto e descontrolado, quem alcançou as palmeiras dos buritis, deixou para trás carcaças de jabutis e corpos incinerados de cobras e sapos.
Manter o Cerrado de pé é a principal política pública para remoção de gases do efeito estufa dentro do setor de mudanças de uso do solo. É estratégia essencial para mitigação e adaptação às mudanças climáticas - uma forma de criar resiliência, inclusive, nas áreas urbanas, por meio da implementação de corredores ecológicos e parques urbanos.
A terra é um espaço múltiplo, contraditório, disputado, conflituoso. É um sonho, uma demonstração de coragem, a busca por um futuro. A terra é poder, é dinheiro, é ambiente de crimes - como a grilagem incendiária. A terra é alma. A terra é história. A terra, simplesmente, vive, respira e conta histórias.
Terra é um gato preto que pula janelas altas, recebe bem as visitas, respeita o próprio tempo, reconhece perigos e inclina a cabeça em pedido de afago.
A corajosa e amável Gaia.
Resíduos e efluentes
quarteto de emissões
Existe um paraíso de murundus em Samambaia, abrigado pelo Parque Boca da Mata. Um dos personagens principais da minha jornada de campo para este projeto, esse lindo conjunto de morrinhos são característicos da paisagem savânica. Uma das fitofisionomias de área alagada no Cerrado, os murundus estão intimamente próximos aos lençóis freáticos rasos, apresentam vegetação arbustiva nos montinhos de um metro e meio e são ligados estruturalmente a cupins e seus cupinzeiros.
Infelizmente, essas pequenas montanhas convivem com o descarte incorreto de lixo - apesar dos esforços de trilhas para coleta organizados pelo Coletivo Boca da Mata. Uma das formas de manejo do lixo pelos invasores humanos do parque é organizá-lo em pilhas e queimar. Com essa receita, surgem os frequentes incêndios florestais - caracterizando o Boca da Mata como uma das áreas mais vulneráveis ao fogo no Distrito Federal.
A lagoinha, perigosamente perto do Setor de Oficinas Sul, também enfrenta um dilema de anos: o descarte de esgoto e de combustíveis em suas águas. Quando nos aproximamos da mata de galeria, a bióloga e participante do coletivo Kallyne dos Santos Oliveira aconselha: preste atenção ao cheiro. O cheiro doce da terra - dançando conosco desde que entramos no parque - se distancia a cada passo que nos aproxima da lagoinha.
Preste atenção ao cheiro.
Campo de murundus, no Parque Boca da Mata.
A terceira maior fonte de emissão no quadradinho é o setor de resíduos e efluentes. Ao longo do período analisado pelo Inventário (2005 a 2018), a liberação de GEEs - dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e óxido nitroso (N2O) – na categoria resíduos apresentou tendência de aumento. Desses, o principal gás é o metano, em mais de 95% das emissões, ao passo que o CO2 teve emissão insignificante.
Nos 13 anos investigados, foram emitidos 16.905,054 mil toneladas de carbono equivalente (mil ton CO2eq) no Distrito Federal. Dentre eles, 2017 foi líder de emissão, com a marca de 1.346,539 mil toneladas. Os pesquisadores do documento interpretam o leve declínio em 2018 como consequência da inauguração do Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia, o que possibilitou a transferência de cerca de 30% dos resíduos para o novo aterro sanitário.
As categorias consideradas no setor de resíduos e efluentes são: incineração de resíduos; tratamento biológico de resíduos sólidos; tratamento de efluentes industriais; tratamento de efluentes domésticos; e tratamento de resíduos sólidos. Até 2016, havia apenas a “disposição de resíduos em sítios não manejados”, realizada no Aterro Controlado do Jóquei desde 2005 - o chamado Lixão da Estrutural. A partir de 2017, a subcategoria “disposição de resíduos em sítios manejados” - marcado pelo início da operação do aterro de Samambaia - é adicionada às estimativas.
Os resultados públicos indicam: as emissões de ambientes não manejados - como lixões - representaram mais de 72% das liberações de gases anuais do setor. A categoria de efluentes domésticos contribuiu com emissões superiores a 23%.
A forma com que o Distrito Federal lida com os resíduos sólidos é algo para se atentar. Entre 2005 e 2018, a emissão cresceu em 24,68% e representou mais de 70% das liberações de GEE do setor como um todo. O descarte desta categoria, juntamente com efluentes domésticos, representaram 98% das emissões de tratamento de resíduos durante todo o período.
Ao realizar o comparativo de dados com a plataforma SEEG no mesmo recorte de tempo, em 2005, o manejo de resíduos e efluentes liberou 854.838 toneladas de gases do efeito estufa. Para 2018, foram 1,5 milhões de toneladas (1.566.482).
Disposto a conter parte da liberação de GEEs na atmosfera pelo setor de resíduos e efluentes, o Plano de Mitigação aponta o caminho de reutilização do combustível derivado de resíduos (CDR) como fonte de energia aos fornos de cimento, às usinas energéticas e à indústria de ferro-níquel. O reaproveitamento de resíduos como combustível na produção local reduziria 218.317 tCO2 por ano, para 2030.
O Plano utiliza informações entregues pelo Serviço de Limpeza Urbano do Distrito Federal. Nelas, são consideradas o planejamento da rota tecnológica da instituição nos anos 2025 e 2030. A partir disso, algumas soluções apresentadas para o cenário de 2030 são:
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Incrementar a compostagem, com redução da emissão líquida em 30.797 tCO2e por ano.
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Uso de biodigestores, com sequestro líquido de 469.920 tCO2e por ano.
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Reciclagem por cooperativas, para diminuição líquida de 79.411 tCO2e por ano.
-
Geração de energia elétrica a partir da queima do metano conteria a emissão de 253.988 mil t CO2e ao ano.
Atividade no Lixão da Estrutural. Imagem feita por Carolina Pádua, este ano.
No Assentamento de Reforma Agrária 15 de agosto, a produtora de hortaliças e pedagoga Laura de Jesus costuma se irritar com algumas situações. Enquanto tomamos um delicioso suco de acerolas retiradas do quintal, ela conta que uma delas é a saga do Papa-Lixo naquela área rural de São Sebastião. Não apenas duas e nem três vezes, já presenciou moradores passarem próximos das caçambas e jogarem o lixo no chão.
"O que custa encostar o carro e jogar lá dentro? Querendo ou não, quando chover, esse lixo pode ir para o córrego aqui próximo", questiona retoricamente. "Tudo isso tem relação com a proteção do meio ambiente e as consequências para o clima quente".
"Não sabe por que o clima está desse jeito?", Laura relembra as perguntas que aparecem em conversas cotidianas. "Sabe, sim. Joga lixo no chão, ele corre para a mata de galeria e para as águas, polui nascente, afeta as árvores… Tudo está interligado. Estão aí as consequências", continua, as mãos entrelaçadas sobre a mesa da varanda silenciosamente concordando.
O barulho de uma grande jaca caindo no chão não interrompeu a conversa. A fruta parecia dizer que certamente esses moradores específicos acostumados a não jogar lixo dentro das caçambas não convivem com, ao menos, uma das crianças ou adolescentes atendidos pela Casa da Natureza.
Do outro lado do Distrito Federal, Ivanete Silva dos Santos, coordenadora socioambiental da Casa da Natureza, fala com orgulho: nossos jovens constrangem os adultos que agem sem consciência ambiental. Conhecer a sede da Casa, no Sol Nascente, é mergulhar na certeza de que a semente do cuidado com o meio ambiente foi plantada em terra fértil. Terra vermelha corajosa.
Ivanete, também especialista em reabilitação ambiental sustentável arquitetônica e paisagística, me conta histórias bonitas sobre o ativismo praticado pelos jovens da Casa, organização criada em 2006.
"As crianças absorvem o que é bom. Elas entendem que ao separar o lixo, você evita que ele vá para os cursos d’água, como o Melchior ou a Lagoinha. Elas são a nossa força".
E continua.
"Nós vamos para a rua plantar árvores. Em cada muda plantada, as crianças entendem o porquê daquela ação. É uma semente que todos estamos plantando no coração delas. Não é só aquela planta física, é também o amor pela Natureza. Quando menos esperamos, a criança ou o adolescente te dão uma lição e demonstram que absorveram os aprendizados". Ao nosso redor, os sons dos pássaros reverberam, parecem concordar.
Ressoa o poder de encantamento da Natureza.
Localizada no Sol Nascente, a Casa da Natureza nasceu em 2009.
Quando cheguei na Casa da Natureza, em uma terça-feira do meio de setembro, dois adolescentes aplicavam um mecanismo alternativo para o cultivo de mudas de alface. Com garrafas plásticas, fizeram vasos adaptados para suprir a necessidade de regar a terra todos os dias. Antes de irem embora, guardam o experimento no berçário para a hortinha. Ivanete me conta, depois que eles dão tchau e vão embora, que ninguém da Casa passou aquilo para eles. Com autonomia, eles trouxeram a ideia, fazendo a coordenadora aprender junto também.
A juventude na Casa sabe da importância do Rio Melchior, quem enfrenta um processo constante de violência, por conta da gestão de resíduos e efluentes no Distrito Federal.
Existem 15 Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) no quadradinho, organizadas em quatro Bacias de Esgotamento Sanitário, de acordo com a Adasa. Há 3 estações na Bacia do Lago Paranoá (ETE Brasília Sul; Brasília Norte; Riacho Fundo); três na Bacia do Rio Descoberto/Melchior (ETE Melchior; Samambaia; Brazlândia); quatro na Bacia do Rio Ponte Alta/Alagado (ETE Alagado; Santa Maria; Recanto das Emas; Gama); e mais quatro na Bacia do Rio São Bartolomeu (ETE São Sebastião; Paranoá; Vale do Amanhecer; Planaltina; Sobradinho).
Em 2019, o chorume do Aterro Sanitário de Brasília, em Samambaia, vazou e atingiu o Melchior - habitante na divisa entre Ceilândia e Samambaia. O Serviço de Limpeza Urbana (SLU) local relatou, na época, que o chorume vazou pelo menos duas vezes. O conteúdo orgânico transbordou, caiu na rede de esgoto e passou para a rede de drenagem - sessão que transporta a água da chuva contaminada para o curso d’água.
Rio Melchior, habitante de Ceilândia e Samambaia. Imagem do ativista ambiental Alzirenio Carvalho.
Em 2019, a comunidade flagrou a intensa contaminação do Melchior. A imagem mostra a quantidade de espuma, decorrente da liberação de efluentes tratados da Caesb. À época, a luta coletiva conquistou a responsabilização da empresa e o tratamento da água, a fim de acabar com a espuma. Imagem de Alzirenio Carvalho
É o Melchior, quem, antes de desaguar no Descoberto, constrói memórias e cotidiano com a população do Distrito Federal, por meio do abastecimento da agricultura familiar e das áreas de banho - não mais frequente no hoje.
Apesar de passar por tratamento, o Melchior recebe 40% dos esgotos do Distrito Federal, além de efluentes não tratados resultantes de processos industriais e agrícolas, eventuais vazamentos de chorume e contaminação por cobre e outros poluentes. A palavra “morte” costuma ser associada ao curso d’água em debates entre pesquisadores, ativistas ambientais e comissões públicas. Morte do rio e dos outros seres que interagem com ele.
"Em 2019, quando houve um rompimento da tubulação no Rio Melchior e as instituições responsáveis - a Caesb, o SLU e o Governo do Distrito Federal - não escutaram a gente, a Casa da Natureza fez uma Ciranda Ambiental. Fomos próximos ao Melchior, montamos uma tenda e discutimos a proteção do rio. Saímos da Praça da Fé, no P. Sul, e caminhamos. Cada criança sabia o significado das faixas que carregavam. O que estava escrito era o sentimento pessoal diante do estado do rio, incluindo mensagens como “preserve o rio”, “Melchior é importante” e “não vamos matar o Melchior”. Na Ciranda, as crianças e os adolescentes falavam. Não eram frases ensaiadas, era o momento de expressão deles, o que eles absorveram com as ações capazes de realizar".
Essa é uma das memórias compartilhadas por Ivanete Silva, coordenadora da Casa.
Criado com forte inspiração na Casa da Natureza, o Instituto Filhas da Terra, ativo em Ceilândia, também participa ativamente na defesa pela proteção do Melchior, a partir de pressão política, presença em audiências públicas, com treinamentos, palestras e eventos.
Os pássaros cantam, em concordância. Acrescentam detalhes perdidos na memória de Ivanete e, em outra linguagem, resgatam outras histórias passadas do ativismo jovem no Sol Nascente.
Quase sai pelo bico deles o eco da fala de Ivanete Silva:
"É assim que eles nutrem o amor pela causa ambiental. Esse é o tipo de amor que se expande para o amor com o ser humano também".
Em novembro, a Casa realizou mais uma ação de plantar mudas de árvores pelo Sol Nascente e Pôr do Sol. Imagem do acervo de Ivanete Silva (de camiseta preta).
Processos industriais
quarteto de emissões
Em atividade de campo na disciplina Comunicação Comunitária, conheci a Ana Júlia. Moradora da Fercal, ela me contou um pouquinho sobre como é viver onde estão localizados fósseis de cianobactérias que habitaram o local há aproximadamente 1 bilhão e 50 milhões de anos, quando tudo aqui era chão oceânico. O nome da região administrativa faz referência à empresa Fertilizantes Calcários (Fercal), povoada, em 1956, por trabalhadores.
É uma história parecida com a da Vila Basevi, também ocupada por operários da indústria de pavimento homônima à vila em Sobradinho, instalada nas proximidades em 1970.
Minhas memórias da Fercal e da Vila Basevi esbarram na arte de uma forma ou de outra. Na primeira, em uma das visitas fruto de parceria entre a UnB e a comunidade local, a fotografia gravou luzes e retratos. Mais de um ano depois, no espaço habitacional dentro da Reserva Biológica de Contagem, aceno para crianças sorridentes e elétricas em uma tarde de terça-feira. Pela janela do ônibus escolar, elas demonstram o quão divertido foi o passeio no Teatro de Sobradinho.
A arte sempre dá um jeito, como a Terra e seu povo.
Entrada para a Vila Basevi, localizada dentro da Reserva Biológica de Contagem, em Sobradinho.
Dados do Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF- CODEPLAN) apresentam que, em 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) do Distrito Federal foi R$265,847 bilhões, ranqueando a capital na oitava posição no cenário nacional, compondo 3,5% do PIB brasileiro. Comparado a 2019 e em razão da pandemia, o valor total reduziu dois pontos percentuais (3,7%).
No ano em destaque, o setor de serviços, principal atividade econômica distrital, apresentou a movimentação bruta de R$227,815 bilhões, equivalente a 94,8% do PIB local. O setor agropecuário apresenta a menor participação na estrutura produtiva local - R$ 1,6 bilhão.
Ponto importante para a discussão neste tópico, a indústria representa 4,6% do PIB local e rendeu R$10,9 bilhões. Este setor emprega 100.330 trabalhadores do quadradinho, de acordo com o Portal da Indústria.
O Inventário de Gases do Efeito Estufa do Distrito Federal, ao fazer os cálculos de emissão relativos ao período entre 2005 e 2018, considerou apenas os processos industriais e uso de produtos. Os subsetores são a indústria mineral; o uso de gases fluorados em substituição às substâncias depletoras da camada de ozônio (SDOs); e o uso e manufatura de outros produtos.
Foram 15.711,81 toneladas de dióxido de carbono (mil ton CO2) emitidos na produção de cimento nesse período - mais de 84% das emissões do setor. Esse subsetor é responsável, em média, por 89% das emissões industriais e de produtos. Em segundo lugar, está a categoria “outras aplicações”, voltada para gases provenientes do uso de ar condicionado, aerossóis e refrigeração.
Os pesquisadores explicam, no documento, que o setor libera os dois seguintes gases, além do CO2 (dióxido de carbono): HFCs (hidrofluorcarbonetos) e SF6 (hexafluoreto de enxofre). Não houve emissões dos gases CH4 (metano), PFCs (perfluorocarbonetos) e N2O (óxido nitroso).
capítulo dois
Vulnerabilidades climáticas no Distrito Federal
Era noite em Cavalcante, no conforto de uma pousada nomeada em homenagem às araras. Sobre nós, as estrelas não se escondem de quem habita aquele espaço goiano. O céu fazia o imenso favor de se mostrar de forma única para os humanos da cidade, encantando-nos com a Via Láctea tão clara e colorida. O fogo é o elemento central das conversas - durante a refeição, ao entrar nos carros, nas trilhas bonitas antes de chegarmos nas cachoeiras.
Uma dessas conversas é com Ane Alencar, diretora de ciências no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Sentada ao meu lado na hora do jantar, respondia às perguntas da minha colega jornalista do Metrópoles, Jéssica Eufrásio. Era o fim de mais um dia do projeto Imersão do Fogo em Cavalcante, Goiás, organizado pelo Instituto.
Reúno coragem e compartilho com Ane o quanto acho poético quando ela fala que “o fogo, em suas condições ecológicas específicas, é um distúrbio natural do Cerrado”. Entrando na onda simbólica, ela resgata o significado desse elemento para várias culturas ao longo da história humana, presente em rituais que transcendem e marcam o tempo.
Os incêndios florestais não entram na equação de equilíbrio ecológico para o Cerrado. Esse é quem engole agroflorestas inteiras, o fogo que deixa para trás a memória corpórea de jabutis e serpentes carbonizadas, quem se alastra descontroladamente, sem eira nem beira. Durante a estiagem prolongada, se tornam mais frequentes.
Lobeira queimada na chácara de Flávio Cerratense, no Assentamento Canaã, após incêndio criminoso.*
*Todas as imagens sem créditos são de nossa autoria.
Por outro lado, temos a chuva, fenômeno culturalmente ligado à ave tesourinha - a aparição da ave traz de volta as nuvens carregadas e faz precipitar no Cerrado. A estação das águas marca o fim da seca, fecha o verão, purifica - assim como o fogo - em diversos rituais religiosos. Água, quem enche rios e cria deus. Perfuma a terra, movimenta nuvens dracônicas e canta como uirapuru e sabiá. Se guarda nos caminhos abaixo do solo, alaga murundus e breja buritizais.
Chuva que enche os reservatórios locais, sacia a sede, garante a produção agrícola, tira o aperto do peito e o medo do racionamento e estresse hídrico. Afasta a preocupação de criar refugiados climáticos.
Em áreas onde a luta por justiça ambiental é constante, chuvas torrenciais também significam alagamentos e enxurradas assustadoras. Invade casas, arrasta terra, asfalto e lixo. Assoreia e lixivia rios e nascentes. De susto e assombro, faz crianças se agarrarem nas pernas da mãe ou da avó, atola carros, derruba postes, faz voar fios elétricos.
A crônica climática do Distrito Federal parece um pouco com a seguinte pintura: a estação seca se senta à mesa humana por tempo demais, desconfortavelmente prolongada. Chuvas pontuais e intensas lavam as ruas. Calor intenso em ondas nos deixa desnorteados, o risco da água faltar desbloqueia memórias dos anos de 2016, 2017 e 2018. Nas florestas, o fogo descontrolado é ameaça às portas, bate sem aviso prévio e carrega o que combusta.
A cena dramática ilustra as principais vulnerabilidades associadas ao clima. O Distrito Federal continuará enfrentando-as no atual contexto de mudanças climáticas e as pesquisas de projeção indicam agravamento desses eventos extremos.
As chuvas torrenciais serão cada vez mais frequentes, aponta o Estudo de Projeção Climática para o Distrito Federal e entorno, publicado em 2016. As estimativas indicam a redução no acumulado de precipitação anual, com o aumento do número consecutivo de dias de estiagem e diminuição do número de dias consecutivos chuvosos.
Cachoeira do Rio Melchior, um dos afluentes do Rio Descoberto. Imagem do ativista ambiental Alzirenio Carvalho.
Quanto ao conforto térmico e ondas de calor, a tendência é o aumento de 2°C a 5 °C da temperatura local, no cenário otimista de emissão do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o RCP4.5. A temperatura chegará às marcas 6°C a 8°C no cenário pessimista - que prevê maior emissão nas próximas décadas (RCP8.5). Os valores de temperatura mínima e máxima seguem essa mesma tendência, ao passo que os períodos com ondas de calor serão mais longos.
As séries históricas analisadas apontam para a redução da umidade do ar: sairá de 35% a 55% no presente e chegará a 20% a 45 % ao final do século. Nesse cenário, teremos mais dias com umidade baixa e menos dias com umidade alta.
As vulnerabilidades, entretanto, não são consequência restrita às alterações do clima, explica o pesquisador Diego Lindoso. Especialista em vulnerabilidade climática e adaptação, contribuiu para o primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC).
As vulnerabilidades discutidas aqui são construção social.
"Nós temos que pensar na vulnerabilidade como um contexto completo. O clima é o gatilho, é o vetor externo e está fora do controle humano - ao menos do controle local, distrital; porque não conseguimos controlar o sistema climático de dinâmica global. Existem determinados aspectos do risco e da vulnerabilidade climática que são construções sociais. Quando pensamos na vulnerabilidade do DF, devemos pensar a questão climática e também algumas particularidades do próprio desenvolvimento demográfico e urbano daqui". Complementa o professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB).
Clima característico do Cerrado, é claro para os habitantes das 35 regiões administrativas do Distrito Federal - e das outras áreas ainda não oficializadas - a presença de duas estações bem marcadas: a seca e o período das chuvas. As vulnerabilidades climáticas associadas à seca no quadradinho são: estresse e crise hídrica, aumento da incidência de incêndios florestais e ondas de calor. Os problemas relacionados à intensificação das chuvas são os riscos geológicos de enxurradas, alagamentos e enchentes.
"Mesmo tendo um longo período de seca que caracteriza o nosso clima, chove bastante aqui no Distrito Federal, só que essa chuva está concentrada em poucos meses do ano - dessa forma, também acontecem episódios extremos de chuva. Nas cidades onde há mal planejamento urbano e drenagem ineficiente, algumas zonas do DF alagam. Um exemplo é o Trecho 3 do Sol Nascente, que é um local bastante sujeito a alagamentos, enxurradas e inundações", adiciona Diego Lindoso.
Áreas nobres, como a Asa Norte, no Plano Piloto, também enfrentam alagamentos. Entretanto, o impacto social em cada uma das localidades é diferente, assim como as iniciativas - e a rapidez de ação - para remediar esses problemas. Nesse cenário, a desigualdade social - e a injustiça ambiental - permeiam decisivamente o debate de adaptação climática.
Biodiversidade no Rio Melchior. Imagem por Alzirenio Carvalho.
Os dados socioeconômicos quantificam a iniquidade do Distrito Federal: o Sol Nascente é o maior aglomerado subnormal (favela) do país, com 32.081 domicílios, de acordo com dados preliminares do Censo 2022 (IBGE), divulgados este ano pelo Correio Braziliense. Até o ano passado, estava em segundo lugar, atrás da Rocinha, no Rio de Janeiro, que possui 30.955 residências.
No extremo oposto do acesso, está o Lago Sul, região administrativa cuja média de renda é R$ 10.979 reais, ainda de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O professor Diego Lindoso reforça:
"Como a vulnerabilidade é uma construção social, ela não é só a dimensão climática. A assimetria e a vulnerabilidade socioeconômica implicam e determinam diretamente o risco em cada região administrativa. Isso significa que a análise justa dos riscos e a adaptação têm que levar em consideração essas desigualdades territoriais. Não pensar o DF como um bloco de vulnerabilidade de risco climático, mas, sim, como um mosaico de vulnerabilidades e capacidades adaptativas desiguais. Isso tem que estar presente na formulação de políticas públicas e na gestão do risco climático na escala do Distrito Federal".
A partir daqui, vamos nos aproximar de pessoas espalhadas por todo o quadradinho. Seguimos, pela terra vermelha, o caminheiro em formato de pergunta: como a população do Distrito Federal percebe as vulnerabilidades climáticas locais?
Acolhidos pelo cheiro de bolo de laranja e o sabor de suco de acerola, adiaremos o fim do mundo por mais alguns minutos.
Ave tesourinha: quando as chuvas chegam
Tesourinha próxima à Área de Proteção Ambiental do Planalto Central, na Chapadinha, Lago Oeste. Simbolicamente, a ave traz a chuva para o Distrito Federal e outras regiões de Cerrado.
O Velho Cerrado, com braços-raízes gentis e cálidos, acolhe seus seres há 65 milhões de anos. Ainda criança, antes de se tornar ativista e especialista em reabilitação ambiental sustentável arquitetônica e paisagística, Ivanete Silva percebeu o envolver amoroso do bioma. Filha do Distrito Federal, nasceu no Núcleo Bandeirante e, aos três anos, saiu da Vila do IAPI para morar em Ceilândia, durante o programa de erradicação de favelas. Junto ao seu pai, aos doze anos, receberam uma casa no P.Norte, espaço de memórias de água e Natureza.
"A nossa diversão melhor era vir do P. Norte para as erosões que tinham aqui, na virada do Sol Nascente, onde eram chácaras. O que separava o urbano do rural eram as erosões. A gente achava lindo, não tinha coisa mais bonita: o aquífero latente jorrava água e dava aquela impressão de cachoeira. Era uma erosão, mas a gente via beleza". Fluem palavras como veios de lençol freático. Estamos sentadas na sede da Casa da Natureza, instituição a qual Ivanete é coordenadora socioambiental. Os pássaros conversam com a gente como quem diz que lembra. "Então, é este é o meu sentimento. O Cerrado como água, vida".
A sede da Casa da Natureza, instituição criada em 2009, está localizada no Sol Nascente e Pôr do Sol. Ivanete Silva é especialista em reabilitação ambiental sustentável arquitetônica e paisagística.
Ceilândia, com 350.347 moradores, e o Sol Nascente e Pôr do Sol - com 91.066 habitantes, de acordo com a Companhia de Planejamento do Distrito Federal - marcam a história local em diversas formas. Sejam como expressão cultural, pela culinária, diversidade musical e comércio, quanto em aspectos sociais, por ser um mosaico construído por pessoas do Brasil inteiro. Até 2019 - quando o Sol Nascente foi regularizado - as duas regiões administrativas eram uma só: apenas Ceilândia.
Aproximadamente 208 habitantes da RA natal da Casa da Natureza moram em locais com alto risco para eventos geológicos como erosão, deslizamentos, inundações e enxurradas. Os moradores da região fazem parte das 2.100 pessoas em áreas sujeitas aos riscos mencionados - de acordo com os dados de 2021 do Relatório de Setorização de Áreas de Risco Geológico, produzido pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM) e com a colaboração da Coordenação de Gestão de Riscos de Desastres (SSP-DF).
20 locais foram classificados em risco alto para esses eventos geológicos, em endereços espalhados por Sobradinho II, Planaltina, Núcleo Bandeirantes (a Vila Cauhy), Riacho Fundo I, Vicente Pires (na Vila São José), Fercal, Arniqueira e Sol Nascente e Pôr do Sol. Ao total, são 1.900 pessoas vulneráveis ao risco.
Sobradinho II é a única região administrativa com classificação de risco muito alto: 200 pessoas residem em dois setores ameaçados: Vila Rabelo 1 - Conjuntos 1 e 2 -; Vila Rabelo 2 - Conjunto A -; e o Condomínio Mirante da Serra - Quadra 04.
O relatório também ressalta a importância do monitoramento contínuo de 76 outros pontos, áreas identificadas como em risco médio ou baixo. Sobradinho II e Sol Nascente e Pôr do Sol, cada uma, registram 10 pontos de atenção, sendo as RAs com maior quantitativo. Fercal (8) e São Sebastião (8) sucedem a contagem.
As principais tipologias ou processos de risco encontrados são deslizamento de solo, processos erosivos, enxurradas, enchentes e inundações. De acordo com o relatório, a maioria dos setores apresentam agravantes, como a falta de infraestrutura urbana, saneamento básico e sistemas de drenagem urbana. Como consequência, a presença do número alto de fossas e os lançamentos de águas pluviais saturam o solo, facilitando deslizamentos, erosões e voçorocas. A situação fica mais séria especialmente ao considerar os pontos onde as enxurradas são comuns.
Em alguns setores, a população aterra as erosões com entulhos e resíduos, de modo paliativo, a fim de amenizar o risco. Em outros pontos, onde aparecem voçorocas, impermeabilizam o terreno, reduzindo a infiltração e a saturação da água no solo.
No Riacho Fundo, algumas casas estão sobre planícies de inundação, próximas às margens de cursos d’água ou no caminho do escoamento das águas pluviais, por exemplo. Em Planaltina, o relatório identificou casas construídas acima de aterros em planícies de inundação, onde enxurradas e inundações são frequentes, ocasionando, também, trincas e rachaduras. Nessas localidades, aspectos agravantes e vulnerabilizantes são moradias de madeira ou mistas com alvenaria.
O documento alerta para a importância de medidas preventivas, institucionais e de intervenções, a fim de evitar que os 76 pontos de monitoramento se tornem áreas de grave risco no futuro. Os autores analisam o atual cenário do Distrito Federal como consequência da expansão urbana em áreas de drenagens naturais e com características geomorfológicas inadequadas para ocupação segura - onde há desestabilização de encostas e feições erosivas.
Imagem por Mariana Rodrigues.
Um desses lugares é o trecho do principal núcleo urbano do Sol Nascente e Pôr do Sol. O Sol Nascente e as bordas de Ceilândia compõem uma região acidentada geograficamente, integrando as bordas de Chapada. Desse modo, o solo é suscetível à erosão. Com a intensa ocupação, os riscos geológicos e suas consequências se acentuam, explica Liza Andrade, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB).
Líder do Grupo de Pesquisa e Extensão “Periférico, trabalhos emergentes”, em que são realizadas assessorias sociotécnicas nos territórios populares e tradicionais, Liza desenvolve no Sol Nascente uma parceria com a comunidade, a fim de construir o Plano Comunitário para Gerenciamento de Risco local.
A especialista considera os riscos de deslizamentos na região administrativa alarmantes e preocupantes. Um dos principais pontos de atenção destacados é o movimentado Trecho 3, uma via longa e reta, que foi criada sem respeitar as curvas de níveis e a topografia do local.
O Sol Nascente enfrenta enxurradas e alagamentos intensos, a lama encontra corpos d’água próximos, assoreando os riachos e córregos. A contaminação dessas águas acontece, também, em decorrência da drenagem - por meio de óleos automotivos. Não é apenas um fato gerado pelo tratamento de esgoto, explica a especialista.
Aqui, a voz do professor Diego Lindoso, pesquisador em Vulnerabilidade e Adaptação Climática, ressoa ao dimensionar risco e vulnerabilidade como associados ao crescimento urbano mal dimensionado, não assistido e desordenado.
A urbanização no Sol Nascente e Pôr do Sol encontra falhas sérias. Em um dos cafés da Asa Norte, Liza Andrade contextualiza o problema, concordando com Diego Lindoso em outro espaço-tempo.
"É preciso considerar as formas de drenagem na região. Para lidar com o problema da água - enxurradas e alagamentos -, é necessário lidar, antes, com o problema de drenagem em Ceilândia. A drenagem tradicional não será a solução do problema no Sol Nascente, nem mesmo com obras caras e complexas".
Em seguida, questiona retoricamente (ou nem tanto): qual será a solução? O mais adequado é descentralizar a urbanização, responde.
"Aliada à aplicação da infraestrutura verde, é necessário realizar o ordenamento urbano da área de acordo com os níveis do lugar, entendendo, também, que quanto menos pavimento, melhor", complementa.
Um dos caminhos indicados pela professora é promover a drenagem híbrida, em que as técnicas tradicionais coexistem com as formas alternativas. Detalha:
"Construir, a partir lógica de Soluções Baseadas na Natureza, jardins de chuva; e vias compartilhadas, por exemplo, em que automóveis e pedestres convivam e dividam os espaços do modo mais harmonioso possível. É possível pensar soluções onde não precisamos rasgar as ruas para fazer grandes obras. Existe a possibilidade de fazer escadas verdes para reduzir a velocidade e intensidade das enxurradas".
A infraestrutura verde ou Soluções Baseadas na Natureza compõem um conjunto de técnicas que buscam criar um espaço mais sustentável, resiliente e saudável. Inclui adaptações urbanas a fim de estocar carbono - como método de mitigação das mudanças climáticas - e de manter ou criar áreas verdes para evitar o aumento da temperatura local. Desse modo, manutene-se o microclima, evitando consequências climáticas como chuvas torrenciais e auxiliando na absorção de água.
O Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) complementa: as Soluções Baseadas na Natureza integram abordagens ecológicas para lidar com o contexto de mudanças climáticas, voltadas para mitigação e adaptação. São ações para proteger, conservar e restaurar, a partir da gestão sustentável dos recursos naturais ou antrópicos dos ecossistemas. Considera também os desafios sociais, econômicos, culturais e ambientais e promove o bem-estar humano.
Outra característica associada às Soluções é o interesse social das técnicas urbanas. Além da integração com a dinâmica ecossistêmica do espaço, é possível associar obras como jardins de chuva a parques ecológicos, explica o professor Diego Lindoso. Assim, a população também terá o benefício das áreas de lazer.
"Essas são outras maneiras de pensar o ecossistema complexo das cidades, indo para além dos métodos tradicionais e convencionais, de um urbanismo mais arcaico", acrescenta Diego.
Rua onde está localizada a Casa da Natureza.
Liza Andrade retoma a explicação do porquê os métodos tradicionais não são a resposta para os desafios contemporâneos. As técnicas de drenagem tradicional surgiram e foram consolidadas em um período onde existia confiança no controle da Natureza pelas tecnologias humanas. No atual cenário, com as mudanças climáticas, fica clara a ausência desse controle. Assim, apenas cadeias de obras grandes e milionárias - linha planejamento comum das instituições responsáveis no Distrito Federal, como o projeto Drenar DF - não irão resolver os problemas urbanos de drenagem.
Nesse cenário, vale reforçar a dimensão social dos territórios no processo de adaptação das cidades. Por mais que as consequências climáticas não tenham fronteiras, pessoas vulnerabilizadas social, racial, econômica e culturalmente enfrentam e enfrentarão maiores dificuldades.
"O Plano de Ordenamento Territorial deve considerar as habitações de interesse social, especialmente quando planeja adaptar as cidades", afirma Liza.
Não muito distante do Sol Nascente e em menor intensidade, Taguatinga é outro espaço urbano que enfrenta alagamentos. Dirigindo em uma rua onde a área residencial, comercial e industrial interseccionam no norte da RA, Cinna Luzia Almeida experienciou um momento de inédita aflição. O asfalto estava alagado, carros se dividiam entre a pista e o estacionamento lateral levemente mais alto.
Fios elétricos pendiam, caídos, de postes tortos e instáveis. A graduanda em Serviço Social na UnB só queria sair daquela situação, quando um barulho no teto do carro a assustou: os fios caíram sobre ela.
"Por alguns segundos, eu fiquei sem reação. Tive medo de seguir, porque não sabia se os fios enrolaram nas rodas… E se eletrocutassem o carro? O que se faz em uma situação como essa?"
Naquela quarta-feira de outubro, Cinna conseguiu voltar para casa com segurança.
"Felizmente, não aconteceu algo trágico. Eu vi tudo que sei sobre eventos climáticos extremos colidindo na minha frente, no meu cotidiano. Me fez refletir sobre os casos em que uma junção de fatores como aqueles levam a eventos desastrosos e trágicos, pessoas tendo que lidar com ferimentos e luto por conta dos eventos climáticos".
A estudante de 22 compartilha o impacto emocional causado pelo cenário climático. Para ela, o ponto que mais gera ansiedade é pensar em como as pessoas irão sobreviver diante das consequências das mudanças climáticas.
"Eu sou uma pessoa que tem casa e carro próprio, tenho a garantia de um teto sobre minha cabeça. Muitas pessoas não têm acesso a isso e, para elas, a vida tem se tornado cada vez mais difícil."
Escrevo no começo da segunda semana de novembro, em 2023, quando a temporada de chuvas ainda não começou propriamente. O Distrito Federal enfrenta mais um momento de onda de calor, as chuvas chegam muito localizadas, desiguais, breves e intensas.
Era o finalzinho de setembro de 2010, quando ainda era moradora nova em Vicente Pires. Toda manhã, minha mãe e eu caminhávamos até a Escola Classe Colônia Agrícola, do ladinho da Feira do Produtor. A aula tinha acabado, era começo de tarde, mas o sol quente das uma da tarde estava coberto por nuvens densas. No tempo da minha mãe sair de casa para me encontrar na escola, as nuvens escuras fizeram alagar as ruas da região administrativa.
Esperamos a situação melhorar. Só lembro que, em algum momento, a minha versão de nove anos foi carregada no colo ao atravessarmos uma pista plana, em frente à delegacia. Era isso ou eu seria levada pela força da água barrosa.
Nove anos depois, a marginal da Estrada Parque Taguatinga parecia um rio - o que, infelizmente, não foi um evento restrito àquele dia. Carros lutavam para atravessar as vias impermeabilizadas. Uma moça estava ilhada, a única solução para evitar o afogamento foi subir no teto do carro. Na parada de ônibus, me juntei a um grupo de mulheres. Esperávamos a enxurrada diminuir a intensidade para subirmos a rua. Caloura na UnB, eu só queria não perder os tênis na enxurrada. Por sorte, conseguimos carona - e não cheguei em casa descalça.
Em entrevista recente ao Correio Braziliense, o tenente-general José Genilson dos Santos, da Subsecretaria do Sistema de Defesa Civil, conta que as áreas de risco apresentadas no relatório do Serviço Geológico do Brasil são mapeadas e acompanhadas anualmente. A matéria apresenta que dezessete órgãos do governo, juntamente com as 35 administrações regionais, trabalham a fim de alinhar medidas de prevenção e de pronta resposta aos riscos locais.
O coordenador de Gestão de Risco de Desastres explica que os principais pontos de alerta são as regiões: Arniqueira, Fercal, Núcleo Bandeirante, Vicente Pires, Planaltina, Riacho Fundo I, Sobradinho II e Sol Nascente e Pôr do Sol.
O Plano de Adaptação local, divulgado em 2021, apresenta sugestões para tornar as regiões administrativas resilientes aos riscos geológicos mencionados aqui. Compõem os dados de análise do documento o relatório da Secretaria de Segurança Pública, desenvolvido pela Defesa Civil: nele, o DF registra 36 áreas de risco espalhadas por 18 regiões administrativas, alcançando 4.733 residências. A Defesa Civil calcula aproximadamente 19 mil moradores em locais de risco para desabamento, incêndio e eletrocussão.
As estratégias sugeridas para reduzir a vulnerabilidade a inundações, enchentes e alagamentos são:
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Operacionalizar, a curto prazo, um sistema de alertas precoces.
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Estabelecer sete pilotos de captação e armazenamento de água em áreas prioritárias, a partir da inspiração do Parque Güell, em Barcelona, na Espanha. Desse modo, seria possível captar água da chuva, fornecer lazer para a população e reutilizar a água colhida. O documento ressalta a importância de criar parques com esse intuito no DF, adaptado ao bioma e à arquitetura local.
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Ampliar, gradualmente, o desenvolvimento de parques resilientes nas áreas de maior risco. Criação de piscinões sob as áreas verdes em espaços urbanos, em busca de direcionar o fluxo de água.
Trabalhos como o realizado pela professora Liza Andrade no Sol Nascente - em que a população participa do mapeamento de risco local e constrói, comunitariamente, as soluções - são uma das chaves principais.
Na Casa da Natureza, as crianças e adolescentes percebem o impacto de combinar práticas como plantar árvores na redução dos danos dos eventos climáticos. Mesmo que seja um trabalho de cantiga de grilo, constante.
O professor e especialista Diego Lindoso resume:
"No Distrito Federal e, de modo geral, nas grandes cidades, quando existem problemas de inundação e alagamento, a solução é fazer obras faraônicas de drenagem urbana, como estão fazendo na Asa Norte, incluindo o piscinão do Yacht Clube. O problema de drenagem ali surgiu com a reforma do Mané Garrincha, alguns anos atrás. Você cria um problema com um projeto de urbanização mal dimensionado e a solução é uma obra caríssima que vai concentrar toda a água, por meio de tubulações, em um piscinão, antes de entrar no lago Paranoá".
"Algumas Soluções Baseadas na Natureza são estratégicas para quebrar a velocidade da enxurrada, evitando que vá para as galerias de captação e drenagem de água pluvial. Muitas vezes, esse material entope, carrega lixo, carrega sedimento, assoreiam rios e o próprio Lago Paranoá. Existem formas de combinar obras de drenagem - sejam grandes ou menores - com práticas como aquela que a Ivanete comentou e as que a professora Liza estuda".
Levar a juventude para plantar entre as ruas e, como política pública, fazer jardins, criar e manutenir parques e desenvolver canteiros centrais. A população do Distrito Federal aproveitaria o lazer de parques urbanos com redutos de pássaros e corredores verdes. De forma conectada, o ecossistema cidade e seus diversos seres também se adaptariam melhor, desenvolvendo resiliência e se apropriando dos espaços urbanos diante deste cenário climático contemporâneo.
Eu, talvez, não precisaria me preocupar futilmente em voltar descalça para casa em uma enxurrada na Vicente Pires. Milhares de brasilienses - um desses 19 mil ou, especificamente, os 2.100 em áreas de grave risco - não precisariam se preocupar em perder suas casas.
Sol estala e o azul do céu intensifica: chegou a seca
Em um dia quente de outubro, a terra vermelha se destaca em nosso caminho pela área rural Chapadinha. A paisagem alta, os vales e o céu amplo puxam a atenção, magnéticos.
Evento ecológico, climático, cultural e social, o período de seca visita os cerratenses entre maio e setembro. No terreiro, tem acerola, pitanga e o cheiro de pequi. As plantas se preparam para frutificar, as copas se vestem em flor.
O futuro nos aguarda com intensificação e aumento da duração do período de estiagem. A tendência é o acréscimo de 2°C a 5 °C da temperatura local, no cenário otimista de emissão do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o RCP4.5. Ainda de acordo com o Estudo de Projeção Climática para o Distrito Federal e entorno, a temperatura chegará às marcas 6°C a 8 °C no cenário pessimista - que prevê maior emissão nas próximas décadas (RCP8.5). Os valores de temperatura mínima e máxima seguem a mesma tendência, ao passo que os períodos com ondas de calor serão mais longos.
As séries históricas analisadas apontam para a diminuição da umidade do ar: de 35% a 55% no presente, chegará a 20% a 45% ao final do século. Teremos mais dias com umidade baixa e menos dias com umidade alta. Com relação às chuvas, a tendência é que a precipitação reduza em todas as áreas do entorno, com períodos extremos anuais mais intensos.
"Os índices de precipitação mostram, com confiabilidade média a alta, redução no acumulado de precipitação anual, aumento do número consecutivo de dias de estiagem e redução do número de dias consecutivos chuvosos", informa o documento.
Ao longo dos últimos 50 anos, entre 1960 e 2010, a umidade do ar abaixo de 30% se tornou mais frequente, passando de 24 dias por ano para 50 dias; assim como as temperaturas mínimas aumentaram em 2.3 °C. Com base no histórico, os pesquisadores do estudo mencionado projetaram dados para os seguintes períodos: 2011 a 2040, 2041 a 2070, 2071 a 2099, considerando os dados históricos de 1961 a 1990.
Os resultados também demonstram: pequena tendência de aumento na radiação solar no Distrito Federal e entorno, no cenário pessimista e otimista do IPCC; redução no número de noites e dias frios; e diminuição do período das ondas de frio, ao passo que as ondas de calor prolongarão.
Como ferramenta potencial para diagnóstico e políticas públicas climáticas, a plataforma AdaptaBrasil dimensiona as vulnerabilidades e riscos ligados aos efeitos extremos do clima para todos os municípios do país. O recurso interativo possibilita escolher os cenários de análise – pessimista ou otimista - e o período -presente, 2030 e 2050.
Atualmente, o Distrito Federal já enfrenta o alto risco de seca, com alta sensibilidade quanto aos recursos hídricos disponíveis e alerta para a segurança alimentar local. Isso significa que, de acordo com os indicadores, o risco da seca impactar a realidade brasiliense é significativo para diferentes setores, especialmente os serviços hidrológicos.
Cultura de folhagens na Chapadinha.
Sua capacidade de adaptação e de resposta à vulnerabilidade de insegurança alimentar na seca extrema é muito alta. Por outro lado, o Distrito Federal é vulnerável aos riscos associados aos recursos hídricos, com baixa capacidade adaptativa. A tendência é de agravamento para 2030 e 2050, tanto nas perspectivas otimistas quanto pessimistas. Essa classificação indica a necessidade de medidas adaptativas para esse fenômeno climático.
A partir dos indicadores analisados pelo AdaptaBrasil, é possível interpretar que o Distrito Federal possui reduzido nível de articulação pública e de capacidade de manter a segurança hídrica mínima da população em períodos de seca. A razão é a falta de alternativas ao abastecimento de água atual, o que expressa dependência do modelo hídrico local.
Ainda com relação aos recursos e estratégias adaptativas, o DF investe pouco em políticas de preparo e infraestrutura de proteção ambiental e apresenta baixa adesão ao programa cidades resilientes, da Organização das Nações Unidas (ONU). Um dos aspectos alarmantes dos dados é o baixíssimo nível de implementação e articulação do plano municipal de saneamento básico, o qual considera o planejamento e gestão de risco dos recursos hídricos.
Nesta reportagem, as principais vulnerabilidades identificadas na estação seca são os incêndios florestais, o estresse hídrico e as ondas de calor. Juntamente com as enchentes, inundações e enxurradas - mencionadas anteriormente -, esses são riscos associados à mudança climática, que tendem a se identificar nas próximas décadas, por conta do agravamento da crise do clima.
quando o fogo chega
incêndios florestais
Cicatrizes de fogo deixadas pelo grande incêndio florestal na Chapada Imperial, em Brazlândia, em 2022.
O domínio do fogo permeia estudos arqueológicos e nunca morre da poesia, para sempre eternizado de uma forma ou de outra. Fogo como braços do sol, mensageiro que leva os pedidos aos deuses, o renascimento, símbolo dançante na busca por harmonia natural, algo roubado ou sob os cuidados dos seres não humanos. No velho Cerrado, é um agente ecológico marcante para evolução ecossistêmica da savana mais biodiversa do mundo.
A Vila Basevi, em Sobradinho, é um espaço peculiar. Localizada na Reserva Biológica de Contagem, a população tem a sorte de encontrar famílias de antas aproveitando a época das mangas, tatus aqui e ali e até assistir aos lobos-guará e onças pelas câmeras de segurança.
Por outro lado, está nas proximidades de Basevi um dos pontos com maior frequência de focos de fogo. De acordo com os dados do MapBiomas Fogo, uma área próxima queimou mais de 29 vezes entre 1985 e 2022. Para a população, a fumaça e as cinzas na seca são vizinhas desconfortáveis e insistentes. Nas ruas 4 e 5 da vila, o problema é outro: quando a chuva aparece, a estrada de chão alaga, invade garagem e enfrenta enxurradas. É mais um ponto de atenção para risco geológico no Distrito Federal nos dados do SGB-CPRM.
Frequência do fogo no Distrito Federal (1985-2022)
Fonte: MapBiomas
244.801 hectares (ha) do território do Distrito Federal foram tocados pelo fogo, com base na série histórica do MapBiomas. É comum os focos alcançarem em áreas novas - foram 83.955 hectares queimados uma única vez. As áreas florestais são as mais vulneráveis: representam 60% da ocorrência, em que a maior parte do fogo foi em vegetação florestal e savânica, o equivalente a 89.137 ha. As áreas não florestais queimadas - formações campestres e campos alagados - representam 57.991 hectares.
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Observação: por uma questão de análise dos dados pela plataforma Flourish, as vírgulas significam os pontos tradicionais, para separar unidade, dezena e centena de milhar. Os pontos, no gráfico, tomam o lugar da vírgula, para separar as casas decimais.
Vera Arruda - engenheira florestal, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e coordenadora técnica do MapBiomas Fogo -, explica como esse elemento deixou de acontecer naturalmente no Cerrado para se transformar em algo frequente, fora de estação e como ação antrópica.
"Muitas espécies evoluíram e se desenvolveram por conta do fogo e, às vezes, até dependem da presença dele. Só que o fogo natural no bioma é consequência de causas naturais, como raios, no final da estação seca e no começo da chuvosa ou ao contrário, no final da estação chuvosa e começo da seca. Nesses períodos, o Cerrado está preparado para lidar com esse fogo".
A especialista continua:
"O fogo foi sendo usado como uma ferramenta, tanto relacionada ao desmatamento quanto como técnicas agrícolas, principalmente para manejo de pastagem. Dessa forma, a gente já se distancia do que seria a presença do fogo natural, porque é basicamente alguém colocando uma fonte de ignição para determinados fins. Esses focos observados têm intensidade, frequência e proporção muito maiores do que os fogos naturais do bioma. Além disso, o que a gente observa para o Distrito Federal, Goiás e o Cerrado como um todo é que a maior parte do fogo se concentra na estação seca. Nisso, o impacto atinge áreas maiores e podem se transformar em incêndios. Em ambientes urbanos, o fogo é um método para limpeza de lixo doméstico e matéria orgânica, como em áreas abandonadas, por exemplo".
Com os dados disponibilizados pelo MapBiomas, é possível identificar áreas no DF que já queimaram 29 vezes. Alguns dos pontos estão às margens da Vila Basevi, em Sobradinho, e no Parque Boca da Mata, em Samambaia. Inclusive, o manejo de resíduos mencionado pela pesquisadora Vera é a principal causa dos incêndios no Parque.
Encorajamos a dar zoom no mapa e procurar os pontos coloridos, especificamente o da Vila Basevi, em Sobradinho.
Conforme explica uma moradora da Vila Base - que preferiu não se identificar -, o Manejo Integrado do Fogo é uma prática frequente na Reserva Biológica de Contagem, responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Quando realizado próximo ao perímetro urbano, a fumaça alcança o conjunto habitacional.
"Para pensar nos motivos de uma área queimar com tanta frequência, é importante considerar os aspectos do uso do solo e também o tipo de vegetação".
Inicia a especialista Vera Arruda.
"Nas formações savânicas, onde estão as misturas de campo e árvores, existe maior presença de fogo, assim como é mais fácil ele alastrar, principalmente na seca. O campim nessas regiões funciona como um combustível e, com redução da umidade, tem caráter inflamável. As áreas campestre são aquelas com maior facilidade e suscetibilidade para queimar. Também, são mais adaptados. Por exemplo, o capim cresce rápido, porque mesmo depois da queima, existe um banco de sementes que possibilita o crescimento novamente".
Porém, a frequência intensa do fogo antrópico impacta a resiliência do Cerrado. As áreas com contínuas queimas não têm o tempo necessário para recuperar sua vegetação e a biodiversidade, de modo geral. Assim, alguns locais ficam cada vez mais vulneráveis, podendo ficar degradados. Nas formações florestais, não habituadas à presença do fogo, o impacto dos incêndios é degradante ambientalmente.
A especialista Vera Arruda continua:
"Como o fogo também é uma ferramenta do desmatamento, existem casos em que uma pessoa incendeia um local anualmente para enfraquecer a vegetação, diminuindo a densidade de árvores, a fim de facilitar o desmate do espaço mais degradado e vulnerável. O fogo também é usado após o desmatamento: junta-se o resto das árvores e arbustos e, então, o eliminam. Independentemente, a queima emite gases do efeito estufa".
Com a alteração de temperatura média, redução da umidade e aumento do período seco decorrentes do contexto, as condições climáticas potencializam a vulnerabilidade local para o fogo. No processo de emissão e consequências na temperatura, a queima da matéria orgânica libera gases do efeito estufa.
"Existe o processo inverso, consequência das mudanças climáticas. A temperatura e o clima estão mudando, alguns artigos científicos mostram que o Cerrado está ficando cada vez mais seco e cada vez mais quente. Esse processo inverso torna o Cerrado mais suscetível ao fogo. É como uma cadeia. O fogo alimenta os gases de efeito estufa, que alteram as mudanças climáticas, que tornam o bioma mais suscetível ao fogo". Sintetiza a engenheira ambiental Vera Arruda. "Isso gera impacto também nos ciclos hidrológicos, porque impede a vegetação de se recuperar".
No dia do Cerrado deste ano, o produtor rural Flávio Cerratense teve parte de suas agroflorestas queimadas. A fonte do fogo saiu de um ponto de grilagem na área de nascentes próxima ao Assentamento Canaã, em Brazlândia. A queima da vegetação foi a estratégia mais fácil para desmatar o local e, inconsequentemente, o fogo não foi controlado.
Flávio desabafa: o impacto foi além do financeiro - afinal, as agroflorestas são sua fonte de sustento. Assistir a tanto tempo de trabalho e dedicação se transformar em matéria carbonizada é doloroso, porque a relação com a terra e o bioma vai para além do uso. A ligação com o território é profunda.
O produtor e ativista ambiental explica que sua plantação não foi a única afetada.
"Uma vizinha, a Maria Quitéria, perdeu todas as agroflorestas. Ela é mãe solo e o sustento dependia da produção".
O que fica depois do fogo: cicatrizes e mangueiras de irrigação derretidas.
Do outro lado do Distrito Federal, Laura de Jesus dimensiona o perigo social dos incêndios florestais para os moradores do Assentamento 15 de agosto. Existe um número significativo de idosos na região, pessoas que teriam dificuldade de fugir das labaredas e se distanciar das casas, caso o fogo se aproximasse.
A fim de preparar a população para esses eventos, o Grupamento de Proteção Ambiental (Gpram), por meio da Operação Verde Vivo (OPVV), organiza atividades de educação ambiental - com palestras e conversas com a comunidade - e entrega de equipamentos, como abafadores e bombas costais. O Gpram e a OPVV fazem parte da atuação do Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal.
O segundo-tenente David Maciel, do Grupamento, me explica que a fase inicial da OPVV é a preparação e prevenção dos incêndios florestais. As atividades envolvem o contato com as áreas mais propensas ao fogo na região, onde são realizadas dinâmicas para conscientizar os moradores sobre as principais origens do fogo rural - o manejo de pasto, vegetação e de lixo. Em conjunto, quais as formas de combate, para conter o fogo até que o Corpo de Bombeiros chegue.
"Essa parte educacional aborda o desmatamento, queima do lixo e manejo do fogo, até como forma de conscientizar a população sobre o contexto de mudanças climáticas", esclarece o segundo-tenente.
Laura de Jesus, produtora de hortaliças no Assentamento 15 de agosto, conta que a população assistiu às palestras e participou de oficinas do Corpo de Bombeiros há alguns anos atrás. Como parte da atividade, foram ensinadas técnicas de reação ao fogo e entregues abafadores à associação e aos moradores. O mesmo aconteceu na área de proteção Chapadinha, no Lago Oeste, relembra Maria Aucineide, produtora rural da região. Nesta última, o ICMBio atua continuamente no monitoramento contra o fogo, conta a moradora.
2023 foi um ano atípico quanto aos focos de incêndio florestal, o tenente David Maciel explica. Essa também é a percepção dos moradores de áreas com constante frequência de fogo nos últimos anos - como Maria Aucineide e Laura. A hipótese é o impacto da chuva fora de época no final de agosto e começo de setembro, umedecendo a vegetação combustível.
O alerta fica para 2024, informa o segundo-tenente:
"Como não houve grandes áreas queimadas, se comparado aos outros anos, o cenário indica que, no ano que vem, aumentarão o número de queimadas substancialmente, durante a estiagem. É isso que aponta nossas análises preditivas e experiência".
E contextualiza:
"Ano passado, por exemplo, houve um acionamento do sistema de comando de incidentes lá no Parque Nacional e perdurou em torno de uma semana para assumir controle da situação. Para o comando de incidentes, todos os recursos são levados para lidar com esse fogo, incluindo monitoramento. São montados acampamentos, numa área segura, para termos controle do que está acontecendo ali. Em 2023, não tivemos esse acionamento, apesar de termos atingidos altas temperaturas aqui no DF".
O que fica depois do fogo.
Manejo Integrado do Fogo e a Vila Basevi
O Manejo Integrado do Fogo é uma técnica preventiva com o objetivo de reduzir o material combustível orgânico - capim seco, gramíneas e folhas, por exemplo -, para evitar incêndios florestais, especialmente em áreas propensas ou vulneráveis ao fogo. Conforme reportagem d’A Vida no Cerrado descreve:
"A queima prescrita acontece entre janeiro até junho, ao passo que a controlada muitas vezes é realizada para o manejo de um local, com a criação ou expansão de aceiros - área queimada, sem material combustível, para impedir que focos de queima ou incêndios alcancem determinada área protegida, como roças comunitárias, nascentes, buritizais e floresta de galeria".
Prática monitorada, o MIF é importante para criar aceiros - método a fim de evitar a expansão do fogo. Para que exista, depende da tríade: pesquisa, formação comunitária de brigadistas e política pública. No Cerrado, locais como matas de galeria, áreas de nascentes e com lençóis freáticos rasos são pontos essenciais para proteção contra o fogo. Dessa forma, o MIF é um método de evitar que o incêndio florestal chegue a esses espaços vulneráveis.
É realizado em diversos pontos do Cerrado, como no território Kalunga, nos municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre (GO). No Distrito Federal, as atividades do MIF são desenvolvidas em áreas de proteção, como o Parque Nacional de Brasília e a Reserva Biológica de Contagem. O Gpram não aplica o Manejo, esclarece o segundo–tenente.
"Na época certa, da maneira correta, com o conhecimento adequado, ele pode ser benéfico tanto para a população que vive ali - como a população tradicional - quanto para a vegetação, como método para diminuir o material combustível. Na época certa, a vegetação também se recuperará rapidamente e logo vai estocar carbono. O mesmo tanto que é emitido será estocado quando a vegetação se recuperar. Digamos que equaliza essa relação. O problema é quando a vegetação não se recupera", explica a engenheira ambiental Vera Arruda.
Caminho de despedida da Vila Basevi.
Como prática educativa e integrada ao MIF, é essencial que as populações próximas às áreas onde a prevenção acontece saibam a importância da medida e sejam escutadas pelas entidades públicas responsáveis. De acordo com uma das moradoras da Vila Basevi, isso não acontece.
Ao redor da Vila, na Reserva Biológica de Contagem, o fogo é uma presença anual, conta Cassandra (nome fictício para proteger a identidade da fonte). Em abril, acontece o Manejo Integrado, para preparar os aceiros e prevenções até maio. Entretanto, o fogo como método é algo que ela questiona:
"Por que aqui são realizados aceiros com fogo, mas em outras regiões com parques e preservação ambiental outros instrumentos são utilizados? Será que não poderiam ser feitos com trator ou de outro jeito, para que o fogo não seja tão constante próximo da comunidade? Acredito que existam outras formas de fazer, que incomodem menos a comunidade e coloquem em menor perigo os bichos na reserva".
Moradora da Vila há dez anos, Cassandra narra que além do incômodo gerado pelo fogo prescrito, a animosidade entre a população e instituições ambientais - ICMBio e Ibama - está relacionada principalmente à não autorização para o pavimento de bloquetes no restante da vila. Para as últimas ruas, a terra vermelha colore os caminhos: em época de chuva, a situação se agrava. Vale lembrar que as ruas 4 e 5 da vila são áreas com intensa enxurrada.
A Reserva, oficializada em 2002, tem o território de 3.426,15 hectares e é motivo de orgulho para os moradores. A consciência ambiental é incentivada pela educação desde cedo. Na Escola Classe Basevi, as crianças aprendem e interagem com a realidade a partir da percepção de pertencimento ao território. O consenso entre a comunidade é a importância de proteger o Cerrado.
"Ninguém quer destruir a própria casa, não é? Então nós cuidamos do lugar onde moramos", expressa Cassandra.
Rua 1 da Vila Basevi. O ônibus amarelo havia acabado de deixar das crianças na escola, após passeio ao Teatro de Sobradinho.
Pergunto se existem formas de educação ambiental e conversas entre a comunidade e as instituições ambientais e ela me conta que não. Inclusive, opina, seria uma iniciativa interessante, para que a comunidade se sentisse escutada e, assim, conseguissem entrar em um acordo.
"O último grande incêndio aqui foi no dia dos pais, este ano". A fumaça densa parecia até névoa em dia frio e chuvoso, mas era exatamente o oposto, a moradora conta. "Foi fogo criminoso. Dois rapazes saíram de perto da barragem e incendiaram pontos específicos da reserva, fazendo juntar bombeiros e os agentes da ICMBio para conter, mas estava muito forte. Tanto que os rapazes entraram no fogo para ajudar a apagar".
São Sebastião, o fogo no Assentamento 15 de agosto
Prestes a descer mais um dos morrinhos sinuosos da região do Assentamento 15 de agosto.
Dentre muitos dos assuntos envolvendo os impactos das mudanças climáticas no cotidiano, Laura e o esposo, Raimundo Nonato dos Santos, me contam histórias de fogo. As principais fontes de queimadas na região são consequência do manejo de lixo e da vegetação, explicam. A forte presença do capim comprido e seco é uma das preocupações de Laura.
"Este ano teve um incêndio, a vizinha queimou lixo e o fogo espalhou com o vento, atingindo dez chácaras. Esse capinzinho mesmo aqui - ela indica com a mão para depois da cerca -, se bater fogo, queima até à beira do rio. Estamos perto de uma reserva legal e de uma Área de Proteção Permanente (APP). Por sermos produtores orgânicos, a queimada tem que ser zero, mas nem todos têm essa consciência".
"Teve uma época que morreu galinha e porco pelo fogo, cerca e caixas d’água queimaram. Só não pegou nos barracos porque as pessoas jogaram mais água para proteger", complementa Raimundo.
Ali próximo, uma vizinha mora em barraco de madeirite, vulnerável ao impacto do fogo e das fortes tempestades. "Quando chove, molha tudo, porque é uma casa de madeirite com lona ao redor. Se passar fogo perto também, já era", Laura se preocupa.
Diversas espécies de capim estão ao redor das casas no Assentamento. A de Laura e Raimundo não é uma exceção.
No Assentamento 15 de agosto, o fogo também aparece com frequência, relembra o casal. A produtora de hortaliças e o esposo veem o Manejo Integrado do Fogo como uma forma interessante de reduzir o tanto de matéria orgânica combustível da região.
"Quando o fogo vem, esse capim parece gasolina", Raimundo maneia a cabeça, indicando as touceiras de vegetação próximas da casa.
Na região, a vizinhança cria formas de evitar o espalhamento dos incêndios. Um dos exemplos é um aceiro feito com trator, em que a espécie de “estrada” criada já impede o fogo de alcançar outros lugares. Laura reforça a importância do maior controle das queimadas na região, especialmente porque estão em uma área próxima de cursos d’água e de uma zona de reflorestamento.
Quanto à questão das moradias vulnerabilizadas, o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR) aconteceu no local, mas não foi finalizado. Ao caminhar pelas ruas entre as chácaras, em um canto ou outro é possível ver casas incompletas, ainda para terminar. Na entrada do lote de Laura, o exemplo material do programa de habitação recebe as visitas da família há cinco anos.
Fogo no Boca da Mata, ameaça à biodiversidade e à vida humana
Ao mapear a saga histórica do fogo no Distrito Federal, o Parque Boca da Mata salta aos olhos por dois pontos: a frequência intensa do fogo e sua localização urbana entre Taguatinga Sul e Samambaia.
Enquanto caminhamos pelo parque, envoltas no cheiro doce do solo pela manhã, Kallyne dos Santos Oliveira, bióloga, brigadista recém-formada e membra do Coletivo Boca da Mata, explica que todo ano há focos de incêndio. Apenas em 2023, até o dia 14 de outubro, foram 4 focos, alcançando mais da metade da área do parque. Os principais pontos afetados são aqueles em que o solo está exposto.
Naquele sábado, Kallyne; Douglas Ribeiro, biólogo, professor e fundador do Coletivo, em 2001; e Breno Vidany, estudante de Agronomia na Universidade de Brasília; me apresentaram ao Parque Boca da Mata.
Vestida com o uniforme da brigada voluntária da região - composta por cinco pessoas -, Kallyne é uma das três mulheres formadas no curso. O Coletivo tem a pretensão de se organizar para, futuramente, realizar o Manejo Integrado do Fogo no parque, a fim de reduzir o material combustível na área protegida. Desse modo, são evitados incêndios de proporções catastróficas. Uma das áreas a ser cuidada é a mata de galeria.
Riachos que compõem parte das nascentes do Córrego Taguatinga
As matas de galeria são pontos importantíssimos de proteção ambiental. Estão no Boca da Mata as nascentes do córrego Taguatinga, um dos afluentes do rio Descoberto - responsável por abastecer 60% da população distrital, de acordo com a Adasa. Entretanto, esses pontos estão em uma já ameaçada realidade de poluição pela ação antrópica aos arredores. Um dos exemplos é o lançamento de esgoto nos feixes d’água em setembro, denunciado pelo Coletivo.
Kallyne e Breno explicam que, durante as ações na mata de galeria voltadas para denúncia e tratamento, o cheiro era insuportável. Além da água escurecida pela poluição de dejetos, encontraram registros de rejeitos de combustível automotivo.
Ao olhar a água clarinha e aparentemente limpa um mês e poucos dias depois das atividades de denúncia, quase podemos ser enganados. A beleza faz querer ceder à tentação de molhar os pés nos filetes da lagoinha. Infelizmente, aquelas nascentes estão muito poluídas para atividades recreativas. Bem mais sutil, o cheiro de esgoto resiste no interior da mata.
O despejo de poluentes não é a única ameaça ao parque. Além do fogo essencialmente oriundo de ações antrópicas - iniciado por queimadas de lixo e derretimento de metais pelos moradores ao redor, explica Douglas Ribeiro - invasões e ocupações irregulares na área afetam a segurança e a preservação do espaço.
A coordenadora técnica do MapBiomas Fogo, Vera Arruda, explica a gravidade da presença do fogo no Parque Boca da Mata.
"Nas formações florestais, como as matas de galeria, mais próximas de cursos d’água, com vegetação densa e alta, o fogo naturalmente não chega. Quando chega, por incêndio florestal, é um evento muito danoso, porque ali estão espécies que não são adaptadas. Em contrapartida, por ter maior densidade de árvores, há mais umidade, então o fogo não se alastra tanto, por conta dessas barreiras naturais".
Outro ponto vulnerável ao fogo é o campo de murundu, conjunto de morrinhos presentes na paisagem savânica, fitofisionomia de área alagada no Cerrado. Caracterizam-se por estarem ligados intimamente aos lençóis freáticos rasos e possuírem vegetação arbustiva. Entre essas pequenas montanhinhas de um metro e meio formadas por cupinzeiros, estão os campos limpos, ocupados por espécies como o capim nativo.
Nas trilhas durante o período chuvoso, Kallyne me explica que é inevitável passar pelos murundus sem molhar a barra das calças. Com o aumento do nível do lençol freático, a água transborda para cima do solo e repousa na superfície entre os campos. Os murundus são extremamente vulneráveis a um dos principais efeitos das mudanças climáticas no DF: a seca extrema.
Campo de murundus, formação alagada do Cerrado. Kallyne e Douglas Ribeiro estão pequenos entre os morrinhos.
Assim como as veredas do Cerrado, os murundus não deveriam pegar fogo nunca, explica Kallyne, justamente por sua sensibilidade e vulnerabilidade às mudanças ecossistêmicas. As grandes esponjas são micro-relevos e não estão presentes apenas no Cerrado brasileiro, detalha Breno Vidany, mas também em biomas savânicos específicos na África e na Austrália.
Vidany contextualiza que antes da legislação reconhecer o parque como área protegida - por meio do decreto 13.244 de 1991 -, o território era um grande pasto, voltado para a criação de bovinos. Por reivindicação popular, o espaço finalmente foi protegido por lei.
A Natureza tem memória ancestral e férrea: Kallyne explica que uma das áreas mais difíceis para recuperação no parque são as remanescentes da pastagem.
A criação de porcos na região é prejudicial para a regulação do ecossistema do Boca da Mata, atividade pecuária realizada pela comunidade carroceria e outras populações inseridas irregularmente no parque. Um dos conflitos de interesses reside na interação entre ambientalistas e a Associação de Carroceiros de Taguatinga Sul. De acordo com Breno, a comunidade alega estar inserida historicamente dentro do parque há mais tempo do que a legislação de 1991. Desta forma, se recusam a desistir da região.
A gestão dos resíduos é um problema local. Dirigindo pelo perímetro do parque, na parte do Setor de Oficinas - construído acima das nascentes - é perceptível a ironia e contradição da vida urbana. Ao lado de placas de “proibido jogar lixo”, esbarramos em pilhas de… lixo.
Ariane Rodrigues, cientista ambiental e pesquisadora do IPAM, observa o Parque Boca da Mata em uma posição geográfica vulnerável à poluição e contaminação de ações humanas. A percepção parte de sua experiência com a temática, presente em sua pesquisa de mestrado.
Se um parque está em local mais baixo que as regiões urbanas ao redor, ele receberá a lixiviação dos componentes jogados na vegetação, como agrotóxicos ou resíduos urbanos. Quando os parques são criados em áreas mais altas - que é a maioria dos casos de parques para criação de nascentes - essas áreas verdes fornecem o serviço ecossistêmico de água, explica Ariane.
No caso do Boca da Mata, diante de seu contexto, das ameaças de contaminação e da presença de área campestre e de cursos d’água, ele é, provavelmente, um parque em local mais baixo que as regiões do entorno.
quando a água falta
estresse hídrico
Quando criança, era um evento assistir, pelo vidro do carro, as comportas da represa do rio Descoberto abertas. Cascatas de água límpida desciam como cachoeiras contra o cimento, envoltas pelo frescor e o respingar de algo tão grandioso. Minha mente volta para esse caminho ao pensar nos cenários de crise hídrica por vir.
O estresse hídrico já é uma realidade para a população local, vulnerabilidade incluída no planejamento estratégico do governo local. O impacto da estiagem e do contexto climático na precipitação e a capacidade de armazenamento da Barragem do Rio Descoberto são analisados pelo Plano de Adaptação do Distrito Federal, de 2021. O Descoberto é ponto estratégico por ser responsável por mais de 60% do abastecimento populacional, uma das principais fontes hídricas do DF.
Identificado como um território altamente sensível à crise hídrica, a plataforma AdaptaBrasil apresenta indicadores que colocam o DF como uma região vulnerável em diferentes níveis, incluindo a sua capacidade de adaptação social e ecológica. O cenário aponta para o risco de grande impacto na segurança alimentar da população, apesar de descrever a unidade federativa como altamente apta a lidar com esse evento.
"Um evento extremo de seca, como o de 2016 a 2018, impacta na ausência de um colchão para produzir e fornecer água de qualidade e na quantidade adequada para a demanda que o DF exige. [Nos anos recentes] a demanda cresceu, a população cresceu. O estresse hídrico é um fator associado ao clima bastante sério e que tem que estar no radar dos gestores, apesar da construção do Sistema Corumbá IV e da captação de água do Lago Paranoá", alerta o professor Diego Lindoso.
Como um quadradinho dentro de Goiás, o Distrito Federal também é impactado pela realidade do estado goiano. O AdaptaBrasil demonstra que no leste do estado o risco é médio para a interferência da seca nos recursos hídricos - e se mantém assim pelas próximas décadas. A capacidade adaptativa dos dois estados é baixa para este evento extremo.
A caminho de São Sebastião, passamos pela Ponte JK e contemplamos, naquele dia especialmente quente, o Lago Paranoá. Espaço de abastecimento e de lazer, a imagem abaixo vislumbra a vista do Lago para quem está indo em direção à cabana de canoagem do Centro Olímpico, na Universidade de Brasília, onde alunos aprendem a remar em caiaques e na canoa havaiana.
O cenário interfere profundamente no estilo de vida da população distrital e a segurança alimentar é uma das esferas mais ameaçadas. A fim de reduzir as vulnerabilidades hídricas, o Plano de Adaptação sugere as seguintes atitudes:
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Áreas de recarga de lençóis freáticos
Nas áreas de recarga de lençóis freáticos, é preciso identificar o tipo de uso hidrológico pelas seguintes categorias: intensidade de uso por outorgas; vazão; produção; e o estado de conservação da vegetação nativa ou das vegetações que permitam a manutenção dos mananciais.
"Outra ação necessária é reduzir as perdas por poços clandestinos ou canalizações inadequadas, mau uso do solo em áreas sensíveis ou manejos inadequados da paisagem e do solo", adiciona o Plano.
O planejamento adaptativo sugere a criação estratégica de novas unidades de conservação ao redor de áreas de nascentes. Algumas sugestões que podem compor ações para reduzir a vulnerabilidade hídrica distrital e adaptar o DF, a partir do visto nesta reportagem, são:
- Considerar a gestão ecológica e urbana do Sol Nascente e Pôr do Sol, a partir de infraestrutura verde e estratégias de proteção aos cursos d’água locais, é uma possibilidade interessante e alinhada ao Plano.
- A construção e manutenção de parques na área, incluindo a garantia do Parque Ecológico de Ceilândia, corredor verde para proteção das nascentes e do Rio Melchior, são exemplos de atitudes voltadas para a adaptação do DF.
- A fiscalização e proteção do Parque Boca da Mata.
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Setor agrícola
Observar e avaliar o tipo de irrigação a partir das mais adequadas técnicas de manutenção da recarga dos lençóis com atividades ecológicas é outro aspecto destacado pelo Plano.
Apesar de não mencionar, uma das formas de produção sustentáveis que atendem à intenção do plano é a produção agroflorestal. Dentre as vantagens ecossistêmicas das agroflorestas, reduz a degradação e promove melhora do solo e da qualidade da água local.
Esse sistema de uso e ocupação do solo a partir da plantação ou manejo de árvores juntamente com culturas agrícolas, comum no Assentamento Canaã, em Brazlândia, chama a atenção de Laura de Jesus. A produtora de hortaliças orgânicas no Assentamento 15 de agosto demonstra interesse em investir nesta forma de plantio - e talvez não seja a única na região de São Sebastião interessada no Sistema Agroflorestal. Para ela, o fomento a esta estratégia produtiva pelos tomadores de decisão é um método adaptativo inteligente no contexto de mudanças do clima.
O Distrito Federal está entre os estados que mais aumentaram o uso de pivô-central para irrigação nos últimos 37 anos (de 1985 a 2021). O primeiro é Maranhão, com expansão em 286 vezes; acompanhado por Goiás, Distrito Federal, Bahia e Mato Grosso, os quatro expandiram a prática entre 51 e 53 vezes. Atualmente, são 13.889 hectares ocupados por essa irrigação no DF, pelos dados do MapBiomas. A área com maior concentração do uso da ferramenta é o leste da unidade, voltado esmagadoramente para a produção de soja.
A produção intensiva e em grande escala no Distrito Federal e entorno é uma das atividades que mais exige recursos hídricos no setor agrícola, demonstra este levantamento.
A pesquisadora e cientista ambiental Ariane Rodrigues contextualiza o impacto ecológico da agricultura com pivô central na região do DF. A partir da agricultura intensiva, os recursos hídricos do Cerrado são vulnerabilizados.
"Ao redor do DF existe um cinturão de agricultura intensiva com pivô central. Esse processo significativo de mudança do uso do solo não está ligado só à expansão urbana e tem impacto para além do DF, como no Rio Preto, que começa no DF e vai em direção à Cristalina e Unaí. Cristalina por um tempo foi considerada uma das áreas com maior irrigação por pivô central no mundo, por metro quadrado. Essas áreas influenciam o DF ecologicamente, porque são transformações do uso do solo intensas".
Dessa forma, o desmatamento goiano influencia os recursos hídricos locais.
"Durante o governo Bolsonaro, vimos o desmatamento aumentar em áreas de urbanização antiga em Goiás. Esses espaços vinham em processo de expansão agrícola para pastagens [- que é uma forma de reuso do espaço já deflorestado -], mas agora o desmatamento está crescendo novamente. São fatores locais, como a pesquisa mostra, que também aumentam a vulnerabilidade da região. O contexto do bioma interfere no DF, principalmente na temperatura local".
Milharal da família Tsuboi, às margens do Rio Descoberto. Na região, em Brazlândia, a água disponibilizada para o cultivo passa por racionamento e vem do Ribeirão Rodeador.
A pesquisa mencionada por Ariane Rodrigues é o artigo “Desmatamento do Cerrado ameaça clima regional e disponibilidade de água para agricultura e ecossistemas”, ao qual ela é a primeira autora. Os dados analisados de 2006 a 2019 revelam que a temperatura média no Cerrado aumentou 0,9°C e reduziu 10% da umidade. A principal causa é a transformação de áreas com vegetação nativa para pastagens e agricultura. Nesse cenário, a vegetação savânica é uma das mais ameaçadas.
A redução da umidade e o aumento da temperatura têm relação com a diminuição do processo de evapotranspiração (evaporação da água no solo e transpiração da água na vegetação). Com isso, a temperatura da superfície aumenta e, em situação extrema, as chuvas reduzem.
Para lidar com a sobrecarga dos recursos hídricos pela produção agrícola, o Plano de Adaptação sugere o aumento do número de regiões hidrográficas e de áreas urbanas monitoradas ambientalmente. Indica também ampliar novos reservatórios no Distrito Federal, para suprir a demanda local: o uso do Rio São Bartolomeu como reservatório, a partir do afluente Ribeirão Pipiripau.
Atualmente, a Barragem do Descoberto, o Lago Paranoá, o Sistema Corumbá IV e a Represa de Santa Maria são as principais fontes de abastecimento no DF. A nível de contexto, vale relembrar que, durante a crise de 2016-2018, a Barragem do Descoberto chegou a operar abaixo de 20% de sua capacidade, em janeiro de 2017. 513 dias de racionamento depois, juntamente com uma série de medidas emergenciais e finalização de obras, em junho de 2018, o racionamento distrital chegou ao fim.
Entre 2016 e 2019, as regiões administrativas com maior consumo (acima de 10 milhões de m³), de acordo com dados da Adasa e da Caesb, foram: Plano Piloto, Ceilândia, Taguatinga e Águas Claras. Essas também são algumas das RAs mais populosas. Os dados foram apresentados na nota técnica Consumo de água tratada no Distrito Federal: um retrato pós-crise hídrica, de 2021, produzida pela Codeplan e a Diretoria de Estudos Urbanos e Ambientais.
Água no campo agrícola do Distrito Federal
O Cerrado tem um jeito particular de contar suas histórias. Deve ser aquela sapiência de quem é mais velho, de quem escuta com facilidade os ancestrais, de quem aprendeu muito e, ainda assim, reconhece a própria ignorância. Cerrado passa a sensação de acolhimento, parece canto de violão e chocalho de cabaça.
Na casa de Maria Aucineide, produtora rural na Área de Proteção Permanente de Chapadinha, no Núcleo Rural Lago Oeste, o Cerrado conversa comigo pelo cheiro do bolo de laranja. Gentil, o bioma tem a mesma aparência do pé de amora de Yago, neto querido e frequentemente mencionado, com carinho, pela produtora.
A chácara leva variedade para os moradores de Taguatinga: goiaba, banana, laranja, mandioca, beterraba, cenoura, atemoia e mandioca, carro chefe de produção. Para escoar os alimentos, participam aos domingos da feira da Praça do Bicalho, em Taguatinga, e integram o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), projeto governamental. Tímidas bananeiras fazem parte da potencial agrofloresta, criação nova ao comparar com a década e meia vivida pela família ali. Tudo começou com a sogra de Maria Aucineide, dona Josita de Souza Araújo.
As grandes e bonitas goiabas produzidas por Maria Aucineide e seu esposo, José de Souza.
Hoje, dividem a chácara de 10 hectares com o cunhado e a memória da sogra, falecida há dois anos. Quando decidiu comprar o espaço, mal sabia dona Josita que a produção agrícola seria a principal fonte de renda da família quando o filho José de Souza ficou doente.
"Meu marido, José de Souza, trabalha como armador na construção civil. Nossos dois filhos já estão adultos e vivendo a própria vida, então decidimos mudar para cá. Antes, esta parte da chácara não tinha produção nem moradia, tudo nós construímos", Maria Aucineide acena para o território, as mãos contando histórias como o Cerrado.
"Ele é produtor rural também e focou nisso quando ficou doente, em 2022. Ele teve câncer no intestino, felizmente cuidou e está bem agora. Durante o processo de tratamento e de cirurgia, vivemos da produção rural, já que ele não conseguia trabalhar na construção. Depois da melhora, voltou para o trabalho urbano, mas nós continuamos com a produção perene, como banana, goiaba e laranja. E a mandioca! Esses dias arrancamos 200 quilos de mandioca, enchemos 15 caixas daquela convencional", fala com orgulho da terra e do trabalho.
A família consegue irrigar a produção com mangueiras graças à água do poço artesiano - recurso que alguns dos vizinhos não possuem, explica a produtora:
"A solução é plantar na época das chuvas. Meu vizinho aqui, mais próximo, está arrumando a terra para plantar feijão. Outras pessoas da rua estão preparando o milho, porque eles não têm irrigação e estão esperando a chuva chegar".
A estiagem prolongada também afeta a qualidade de crescimento das plantas. "Se você passar dois dias sem molhar, já começa a perder, a morrer".
Em São Sebastião, no Assentamento 15 de agosto, Laura de Jesus já chegou a perder produção de hortaliças pela ausência de irrigamento. Felizmente, há quatro anos contam com o apoio do pequeno sistema de aguagem. Mas nada substitui o equilíbrio climático, que lhe faz falta.
"No tempo de muita seca, a produção requer muita água, porque quando a gente planta as mudinhas, temos que aguar pelo menos umas 10 vezes por dia. A mudinha é bem pequenininha, se deixar sem cuidados quando está muito quente, murcha e morre logo. Quando está chovendo muito também é outro problema, porque encharca e morre do mesmo jeito. E tem a questão das pragas, porque aparecem os pulgões e outros insetos que gostam do tempo quente e úmido. É importante que tenha o equilíbrio, meio a meio, nem muita chuva e nem seco demais".
Produtores da Nova Aguilhada realizam colheita de folhagens em chácara no Assentamento 15 de agosto. Da esquerda para direita: Fernando Rocha, Francisca da Silva e Carlos Freitas.
Lá na Nova Aguilhada, ainda em São Sebastião, não são raros os casos de perda de produção pela ausência de água. O conflito hídrico no local é algo que preocupa os produtores, explica Carlos Freitas, trabalhador do campo há mais de uma década.
Quando a chuva torrencial chega, a perda da cultura é uma realidade no 15 de agosto: uma das razões é a sensibilidade das hortaliças, principal alimento da região. O escoamento da produção é feito como dificuldade - indo para o centro de São Sebastião, pouco antes de sairmos da estrada de terra e o asfalto começar, existe um aclive. Aquela estrada - e especialmente essa subida - é convertida em lama intensa na estação chuvosa.
Ao menos as queimadas não envolveram as casas de fumaça em 2023, fenômeno comum nos anos anteriores, retoma Maria Aucineide. Por ser uma área monitorada, o ICMBio acompanha a região e, em casos de incêndios, a ação dos bombeiros é rápida. Certa vez, lembra a moradora, a ação de combate perdurou semanas, inclusive com o apoio de helicópteros.
"À noite conseguimos ver, ainda este ano, alguns focos de vizinho queimando alguma coisa".
A proteção ambiental da área também acontece por meio de fiscalização comunitária entre os moradores. Nesse cenário, Maria Aucineide se mostra interessada em aprender mais sobre o impacto das mudanças climáticas no DF - o que poderia ser uma iniciativa educacional nas áreas rurais do quadradinho.
"Se algo acontecer, a gente denuncia. Lá embaixo tem uma represa, que é um dos pontos em que mais prestamos atenção. Ano passado o fogo passou beirando… Nós protegemos os animais aqui também, ninguém pode matar cobras, por exemplo, e nem pensar em fazer queimada. Se for queimar lixo ou alguma coisa, avisar ao grupo da comunidade. Tem uma cachoeira lá embaixo, bem cercada e protegida. Apenas o pessoal da comunidade pode interagir com ela, mas só depois de comunicar ao presidente da Associação".
Chapadinha tem importante produção regional. Programas como Cesta Verde, Aquisição da Produção da Agricultura (PAPA), o Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o PAA fazem parte das estratégias de escoamento do cultivo local. No caso do PNAE, explica Maria Aucineide, o produtor conversa com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), enquanto a Cesta e o PAPA passam pela organização e intermédio da Associação local.
Lá em São Sebastião, assim como Aucineide, Laura faz parte do Programa de Aquisição de Alimentos. No dia em que conversamos, ela havia feito a entrega semanal, com alface, couve e maxixe dividindo espaço no carro. Às quintas, participa da feira no Instituto Federal da região administrativa.
Motivo de orgulho de Laura, esta é a sua horta de alface. Imagem do arquivo pessoal da agricultora.
À distância de um punhado de amoras de Chapadinha, próximo ao espaço onde acontece a Feira do Morango, em Brazlândia, conhecemos a família Ina-Tsuboi. Falar da história de Takao Tsuboi, Roza Mitiko Tsuboi, Eduardo Keizo Tsuboi, Carina Keiko Ina Tsuboi e Karen Rie Ina Tsuboi é atravessar a história de Brazlândia e da construção de Brasília.
A narradora-Cerrado desta vez é a comerciante Carina Keiko Ina Tsuboi e as testemunhas são os abacateiros quinquagenários.
Carina Keiko Ina Tsuboi e Eduardo Keizo Tsuboi. Imagem tirada pela filha, Karen Rie Ina Tsuboi.
Para alimentar a nova capital, agricultores japoneses - vindos de estados como São Paulo e Paraná - foram incentivados pelo governo federal a se mudarem para Brazlândia. Takao Tsuboi e Roza Mitiko Tsuboi chegaram na região em 1971, com o filho de três anos Eduardo Keizo Tsuboi - quem, hoje, é o esposo de Carina.
Na época, foram entregues terras para os agricultores, mas o apoio foi pouco ou quase inexistente. No caso de Takao Tsuboi e Roza Mitiko Tsuboi, foram 11 hectares de propriedade. O governo possibilitou linhas de empréstimo e acesso ao adubo, mas, ainda assim, “muito precários”, conta Carina Keiko. As dificuldades foram muitas, assim como o trabalho. Alguns dos produtores desistiram ao longo dos anos - mas não a família Tsuboi.
A vida no campo tem suas frustrações, desabafa Carina, e o sogro passou por muitas delas: dificuldade em pegar o ritmo da plantação; seleção, por tentativa e erro, do que plantar na chácara; e problemas com recursos são exemplos. Takao Tsuboi faleceu aos 61 anos, deixando memória de coragem e persistência.
"Se meu sogro não tivesse coragem para vir à Brasília junto a sua família, isso não seria possível", conta a comerciante. Suas palavras expressam agradecimento a Takao Tsuboi.
Associando a história da propriedade com o contexto de alteração do clima, Carina afirma: "As transformações podem ser espaços para mudanças positivas também".
Roza Mitiko Tsuboi. Imagem tirada pela neta, Karen Rie Ina Tsuboi.
As palavras de Carina Keiko são carregadas pelo vento enquanto caminhamos na plantação de milho e mandioca. Em breve, aquela cultura verde será dispersada pelo oeste do quadradinho, por meio de uma rede de mercados.
Ao fundo do milharal, o Rio Descoberto nos assiste, resplandecente no sol das onze horas, a pose de quem quer falar também.
"Quando mais jovem", Carina começa, o olhar distante nas águas, "a gente costumava nadar de margem à margem no rio".
Desde a criação da barragem, o governo desenvolveu canais hídricos de escoamento com o objetivo de ligar os cursos d’água locais às chácaras agricultoras. Para a produção da família Tsuboi, a água da plantação vem do Córrego Rodeador.
Atualmente, a organização responsável pela gestão dos canais é o Condomínio do Sistema de Irrigação Rodeador (Cosir), formada pelos usuários da água racionada. Carina explica que há aproximadamente quatro anos a Agência Reguladora de Águas, Energia e Saneamento Básico do Distrito Federal (Adasa) assumiu o projeto de substituir os canais abertos por tubulações, para reduzir a perda de água e facilitar a ramificação do acesso. O sistema ainda está em fase de conclusão e atende em torno de 80 chácaras, complementa Carina.
A comerciante relembra que, durante a crise de 2016 a 2018, passaram por períodos em que não tinham capacidade de irrigar a produção, por conta da seca e do estresse hídrico. Nos anos mais recentes, considerando a frequência dos eventos de mudanças climáticas, não houve perda agrícola na chácara. A principal razão é o conjunto de adaptações tecnológicas utilizadas. O encanamento do acesso à água é uma dessas ferramentas, assim como a revisão dos canos de irrigação, a troca da bomba d’água - a fim de reduzir o consumo de energia e otimizar o uso da água -; e a instalação de placas fotovoltaicas.
Faz calor no campo
Estrada em direção ao Assentamento 15 de agosto, assim que saímos da pista asfaltada.
O meio rural do quadradinho não está inserido nos territórios de ilhas de calor, mas isso não anula o impacto do aumento da temperatura nessas regiões. No campo, a colheita do cheiro verde e alface não é resfriada pelo ar condicionado.
Margeado por eventuais pequizeiros receptivos, o caminho para encontrar o lar de Laura de Jesus foi bonito do começo ao fim. Na volta, a música entre as chácaras era vocalizada pela alegria das crianças banhando em caixas d’água, em uma tentativa de aliviar o calor de 35°C daquele dia, as piscinas criativas rodeadas por árvores frutíferas. No carro quente, sentimos inveja.
Foi um alívio sentir o cheiro da terra molhada na horta onde a família de Carlos Freitas, Francisca da Silva e Fernando Rocha colhiam cebolinha e alface, fazendo voar terra para distante das raízes dos condimentos. Moradores e produtores da Colônia Agrícola Nova Aguilhada - há aproximados dez quilômetros de distância de onde estávamos - encontrá-los foi uma boa coincidência jornalística.
A paisagem bonita e estalando o céu azul contrasta com o verde úmido e a terra escura da horta.
Fernando Rocha percebe os fenômenos decorrentes das mudanças climáticas - especificamente o aumento da temperatura e as ondas de calor duradouras - em exemplo prático, curioso, quase imperceptível, mas presente. São as “manchas de sol” nas paredes de sua casa. “Antes, essas manchas nunca apareciam”, mas, neste ano, elas estamparam a habitação do agricultor.
O clima árduo requer dos trabalhadores, assim como da construção domiciliar, resistência física. "A gente tem que resistir à essa quentura, ao tempo seco", completa Fernando. Colher o sustento em altas temperaturas é um desconforto exaustivo.
Para se proteger do impacto do sol, Fernando usa uma blusa de frio - o que provavelmente aumenta o calor sentido naquele dia tão quente.
Carlos conta que uma das preocupações é o acesso à água. Rega a plantação com água do poço artesiano e do riacho próximo, mas o nível hídrico baixo dos recursos reduz significativamente a frequência com que molha o cultivo. Com a quentura, diminuiu a produção, para evitar a perda de investimento.
Assim como muitos outros agricultores assentados, a família vende os alimentos para projetos governamentais. Contam que, infelizmente, apesar da crise climática, não recebem apoio de custo ou algo similar para continuarem produzindo e participando dos programas.
"Se você for pedir aluguel de máquina ou algo parecido, para que o assentamento consiga construir tanques para interromper o uso da água do riacho, porque senão ele vai secar, a gente não recebe resposta alguma". Carlos também se queixa da forma como é tratado quando tentam conversar diretamente com as instituições governamentais agrícolas. "Mas recebemos apoio das pessoas na comunidade, não do GDF. Nossos vizinhos cedem água, por exemplo, quando falta".
A falta de água é um problema sério em Nova Aguilhada, explicam:
"Já houve casos recentes de pessoas perderem a produção".
Agricultor há mais de dez anos e morador na Nova Aguilhada há um, Carlos revela que os produtores locais competem pelo recurso com empresas próximas.
"Tem uma firma que pega água do córrego toda semana", relembra.
"E não é só um caminhão pipa, não. Esses dias, nesta semana ainda, foram dois", Fernando detalha, as mãos ocupadas balançando um maço de alface, para tirar o excedente de terra das raízes.
"Rapaz, sai um e entra outro", Carlos finaliza a explicação, colocando mais um buquê de alface dentro da caixa plástica.
Acima de nós, o céu das 15 horas também se diverte ao escutar as crianças nas caixas d’água.
Árvore do jardim do Cerrado na chácara da família Tsuboi. A plantação de árvores nativas foi uma medida que Carina tomou para lidar com os buracos decorrentes da retirada do solo da propriedade para finalizar a pavimentação da BR vizinha à chácara. Ali estão diversas espécies nativas.
Do outro lado do Distrito Federal, em um dia diferente da semana e às 11 horas da manhã, estamos protegidas pela sombra da fileira de ipês - uma história que, no passado, desagradou muito o sogro de Carina….
A comerciante desabafa: apesar de preocupada, não se sente pessimista em relação ao futuro.
"A Natureza é muito sábia. Ela quer se restabelecer", Carina Keiko reflete, " humanidade tem um papel essencial nisso". Pelo que interpreto, esse papel essencial é de apoio ao Meio Ambiente. Para ela, a mudança de comportamento é ponto-chave no atual cenário climático, incluindo práticas cotidianas e o esforço da educação.
A Natureza tem memória radical e radicular. Em uma outra parte da chácara, Carina lembra o cultivo de goiabas do sogro.
"Goiaba é uma produção delicada. Na época, meu sogro usou bastante agrotóxico para conseguir plantar e vender os alimentos… Agora, muitos anos depois, tudo que plantamos aqui morre com o tempo. Acreditamos que o veneno tenha descido para o lençol freático. As árvores com raízes profundas acabam acessando essa água e morrendo depois". Aponta para o esqueleto de um pé de jabuticaba e de limão, algo desenhado como uma metáfora.
Provável limoeiro que não conseguiu sobreviver no solo.
Apenas espécies rasteiras e de raízes curtas conseguem se manter na antiga plantação de goiabas.
como podemos nos adaptar à quentura?
ilhas de calor
É vermelho, como a terra sob nossos pés cerratenses, a cor do alerta emitido pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Uma segunda quente no Distrito Federal, 13 de novembro, bateu o preocupante recorde do dia mais quente da história do mês e de 2023, com a temperatura de 37,2°C. A umidade relativa do ar ficou em 15% em Planaltina, apesar da chuva em pontos isolados. O segundo dia com a maior temperatura local deste ano foi 24 de setembro, com 36,7°C no Gama. Na madrugada do dia 13, à meia-noite, a temperatura no Gama chegou a 26.9 °C.
Talvez o terceiro risco associado ao clima possa se materializar pela imagem do ventilador. Ou o cansaço. Ou a irritação. A letargia. A frustração. É sufocante sentir na pele - e no peito - a possibilidade de colapso climático.
A onda de calor de setembro e novembro fez cada pessoa do Distrito Federal sentir, ao menos uma vez, um intenso desconforto térmico. Quem convive com pessoas idosas ou crianças percebeu o quanto a saúde dessa parte específica da comunidade é impactada. Foram dias com temperaturas de até cinco graus a mais para a média do período, sem nenhum sinal de constância na frequência das chuvas.
"Minha realidade é muito atrelada à da minha mãe. Eu cuido dela e sinto que sua saúde fica mais debilitada - e não de uma forma crítica, mas ainda assim - com o desconforto térmico. Minha mãe tem dores neuropáticas e, quando o calor aumenta, essas dores também se intensificam. Ela sente mais aflição na região ocular - onde ela também tem uma questão física -, mais dores de cabeça e maior indisposição".
Cinna Luzia, estudante de Serviço Social na Universidade de Brasília, acompanha de perto o latente desconforto da mãe, Lucineide Luzia Almeida, de 58 anos. Atualmente moradoras de Samambaia e, à época, residentes de Taguatinga, a família Luzia lida tanto com as ondas de aumento de temperatura quanto com o fenômeno das ilhas de calor.
O especialista em adaptação e vulnerabilidade climática Diego Lindoso explica que esses dois aspectos urbanos e contemporâneos se potencializam reciprocamente.
"As ilhas de calor são problemas estruturais das cidades por conta da estrutura pavimentada, edificação e cobertura verde limitada, principalmente nas áreas de crescimento urbano desordenado. Quando associadas aos episódios de ondas de calor, os bolsões quentes se agravam".
A falta de acessos intensifica o incômodo climático. Parte da população não tem ar condicionado; outros não possuem segurança financeira que garanta fazer uso do ventilador, porque o preço da conta de luz aumenta.
Bem próximos da Escola Classe São Bartolomeu, em São Sebastião.
A injustiça e o racismo ambiental também estão presentes na distribuição de áreas verdes e parques ecológicos no DF. Quem não mora em ambientes arborizados não consegue acessar, com facilidade, esse tipo de refrigério e lazer natural. Direta e indiretamente, o contexto desigual interfere na capacidade adaptativa da população. E na saúde, na resiliência física e mental. E na possibilidade de esperança e criatividade para sobreviver aos piores momentos da crise climática.
É por isso que Diego Lindoso destaca a importância de pensar o risco de forma integrada e complexa, considerando o Distrito Federal como uma unidade da federação heterogênea, permeada por desigualdades e contrastes. O especialista tece a crítica: apesar de ter um território pequeno, está localizado no DF um dos bairros mais ricos do Brasil, que é o Lago Sul. Ao mesmo tempo, temos alguns dos indicadores socioeconômicos mais baixos do país.
Quando perguntei à Ivanete Silva, coordenadora socioambiental da Casa da Natureza, no Sol Nascente, se ela percebe a mudança no comportamento socioambiental dos jovens atendidos, sua resposta atravessou o ponto mais fundamental da tentativa de construir - e destruir - o mundo.
"Não é fácil você falar do equilíbrio ecológico para uma criança que está com fome. Quando uma criança chega na aula e fala “tia, não tem café da manhã aqui?”, você se pergunta “será que a criança não comeu antes de sair de casa?”. Como falar do ambiental quando o socioambiental é gritante? É o contexto de injustiça social".
"As crianças absorvem o que é bom. Elas entendem que, ao separar o lixo, você evita a poluição dos cursos d’água, como no Melchior ou na Lagoinha. As crianças são a nossa força. Nós vamos para a rua plantar árvores e em cada muda que é plantada lá na rua, as crianças entendem o porquê daquela ação. É uma semente que todos estamos plantando no coração delas. Não é só aquela planta física, é também o amor pela Natureza. Quando menos espera, a criança te dá uma lição e demonstra que ela absorveu os aprendizados".
Em outro momento da entrevista, ela retoma a reflexão de um legado:
"Essa também é a semente da conscientização, é o legado da Casa da Natureza: a tentativa de transformar a vivência deles [crianças e adolescentes]. A cultura familiar pessoal eles já têm, assim como a realidade do convívio na comunidade. Mas a realidade de fazer acontecer no Meio Ambiente, para melhorar a qualidade de vida, eles vão aprendendo a cada dia com as ações".
Arte na parede externa da Casa da Natureza.
Plantar uma árvore nativa do Cerrado no Sol Nascente, uma das regiões urbanas do Distrito Federal com pouquíssimas áreas verdes, é um ato de exigência.
O cenário local de vulnerabilidades climáticas tem relação histórica com o processo de planejamento ambiental e de urbanização no DF. A cientista ambiental Ariane Rodrigues analisa:
"Como uma cidade planejada e criada recentemente, tínhamos as possibilidades de não repetir erros anteriores de outras cidades. O que vemos atualmente é a presença de problemas urbanos parecidos com o de áreas de ocupação mais antigas e que não tiveram margem para resolver problemas".
A margem mencionada por Ariane pode ser tempo ou tecnologia. As duas fazem sentido ao rebobinar os últimos 63 anos no quadradinho-capital.
Enquanto o Plano Piloto abriga o maior parque urbano do mundo, de 4 milhões e 200 mil metros quadrados - o Parque Sarah Kubitschek -; Ceilândia luta para regularizar o Parque Urbano do Setor O. Ali próximo, o Sol Nascente e Pôr do Sol enfrenta o dilema de criação da reserva do Parque Metropolitano e do Parque Lagoinha. A promoção dessas áreas verdes influencia na proteção dos cursos d’água, como o Melchior.
Especialista em sensoriamento remoto e experiente pesquisador em questões ambientais urbanas, Gustavo Baptista explica porque a cobertura vegetal nas cidades é um aspecto de vulnerabilidade preocupante. A ausência de áreas verdes está associada à classe econômica.
"Havia, antigamente, uma tendência de dizer que o DF tem o mínimo de cobertura florestal exigido pela Organização Mundial da Saúde, que são doze metros quadrados de vegetação por habitante. Isso era uma grande mentira, porque se utilizava como referência o Parque Nacional de Brasília, o Parque das Águas Emendadas e a Área de Proteção Ambiental Gama/Cabeça de Viado. Quando analisadas as manchas urbanas e o quanto existe de atividade fotossintética dessas áreas – um trabalho realizado por uma das pessoas que orientei anos atrás -, só havia superávit de vegetação em regiões administrativas como Park Way, Lago Sul e Lago Norte. Ao analisar áreas como Paranoá, Itapoã e Sol Nascente e Pôr do Sol, não há árvores".
Pôr-do-sol na Estrada Parque Taguatinga, quase chegando ao centro da RA homenageada pela via.
O pesquisador e professor do Instituto de Geociências da UnB continua:
"Apesar de Brasília ter grandes monumentos e grandes jardins, parte da vegetação encontrada são gramíneas, espécies pouco eficientes na prestação de serviços ecossistêmicos de suporte. As Asas Sul e Norte, no Plano Piloto, são locais muito bem arborizados, existe conforto térmico associado a um processo de evapotranspiração e o conforto das sombras, mesmo que não seja vegetação nativa do Cerrado. Em outras áreas, como as mencionadas anteriormente, é perceptível o inacesso a esses recursos arbóreos, algo extremamente importante para o convívio entre pessoas e Natureza, a qualidade de vida e a minimização dos efeitos das mudanças climáticas".
A Secretaria do Meio Ambiente e Proteção Animal (Sema), em resposta ao nosso contato, explica que atua nos últimos anos com projetos de reflorestamento e formação de florestas urbanas, com o objetivo de mitigar as emissões de GEEs provenientes principalmente do transporte urbano.
"Hoje há projetos em andamento que estão promovendo o plantio de sementes e mudas do Cerrado nas áreas de proteção permanente (APP) da Orla do Lago Paranoá (Orla Sul e Orla Norte), além de iniciativas de plantios nas Unidades de Conservação – como Parque Ecológico de Águas Claras, Copaíbas, Dom Bosco, Arie do Bosque, Garça Branca, Paranoá, Brazlândia, entre outros. São aproximadamente 400 hectares de áreas que vêm recebendo ações de recuperação – isso em se tratando das iniciativas acompanhadas pela Sema, sem contabilizar as ações da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), Brasília Ambiental e outros órgãos", descreve a nota.
Outro projeto destacado pela Secretária é a mobilização para o Dia de Plantio de Mudas Nativas do Cerrado (primeiro domingo de dezembro), em que a primeira atividade será este ano. Ressalta as parcerias com Organizações da Sociedade Civil voltadas para educação ambiental, como as atividades de plantio no Parque Ecológico das Garças, realizadas neste ano.
Ilhas de calor urbanas no Distrito Federal
O Norte de Sobradinho II e São Sebastião; o Sul de Taguatinga e Vicente Pires; as porções Leste de Ceilândia, Gama, Samambaia e Recanto das Emas; Águas Claras, Park Way, Guará, Candangolândia, Núcleo Bandeirante, Plano Piloto, SIA; a parte Oeste do Lago Sul e de Santa Maria são os pontos mais quentes do Distrito Federal. Os dados referem-se a maio de 2019 e integram a pesquisa Potencial de Calor em Áreas do Distrito Federal, em que o primeiro autor é o professor Raphael Cessa, do Instituto Federal de Brasília (Campus Planaltina).
Consequência do crescimento desordenado das cidades, impermeabilização do solo, remoção da vegetação, edificações, pavimento e trânsito intenso de veículos, as ilhas de calor são fenômenos que alteram o micro-clima local. Uma das consequências é o aumento da temperatura, redução da umidade e da velocidade do vento local e aquecimento das superfícies. Outro efeito é a alteração das chuvas.
Talvez uma boa palavra para definir a sensação é o mormaço: quando está quente, o vento parado e o clima seco.
O professor Gustavo Baptista explica que as ilhas de calor no Distrito Federal são pólio-nucleadas, ou seja, com mais de um ponto aquecido. Com a população das cidades satélites se locomovendo principalmente para o Plano Piloto, mas também a intensa atividade em regiões como Taguatinga, Ceilândia, Águas Claras, Park Way e Samambaia, a organização urbana local possui diversos núcleos, sem, necessariamente, compor um bloco denso.
"Taguatinga, Ceilândia e Samambaia, por exemplo, são muito próximas, mas existem algumas depressões fotossinteticamente ativas, como os cursos d’águas, dividindo-as". Acrescenta Gustavo. Assim, a quentura em cada uma desses centros urbanos não se acumula, sem consolidar um grande grupo urbano com alta temperatura.
Quanto mais áreas com solo exposto e superfícies pavimentadas, mais quente é a região urbana. Como demonstra o livro Mudanças Climáticas e Ilhas de Calor Urbanas, o qual o professor Gustavo é um dos autores, menos aquecidas são as áreas densamente arborizadas, com sombra dos edifícios ou presença de corpos d’água.
"O acelerado e impactante processo de urbanização traz a demanda por ações rápidas, no sentido de mitigar o clima artificial e até desértico, criado nas cidades", alerta a pesquisa.
Feira da Ceilândia, um dos principais pontos de encontro na RA.
Proteger, reestruturar e cuidar das áreas naturais do DF - como locais de proteção ambiental e os cursos d’água urbanos e rurais - são chaves importantes para mitigar os efeitos das ilhas de calor e amenizar as ondas de alta temperatura. Desse modo, aumenta-se a resiliência do ecossistema das cidades e das pessoas.
35% das áreas urbanas do Distrito Federal possuem vegetação arbórea, de acordo com os dados levantados pelo Plano de Mitigação. É o equivalente a 8,2 mil hectares. O documento afirma a existência de substantivo espaço para implementar um programa de vegetação urbana a partir do plantio de árvores por todo o DF, preferencialmente espécies nativas.
"Propõe-se estabelecer o Programa de Florestas Urbanas contando com uma meta até 2025 de delimitar 3.400 hectares de novas áreas de florestas urbanas, ampliando o plantio de árvores em locais com ocorrências entre 20% e 30% de cobertura arbórea diante da definição de 30% de cobertura arbórea para se considerar floresta, segundo o governo do Brasil e a FAO. Até 2030, essas áreas somam o total de 3,9 mil ha adicionais ou, aproximadamente, 17% das áreas verdes nas regiões urbanas e poderiam ser consideradas novas florestas urbanas. Esse incremento representa um total de 7.300 hectares de florestas urbanas até 2030".